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    Nina Horta

    O caganer da esperança

    06/01/2016 02h00

    Janeiro. " Os que sobreviveram que se regozijem, é o mais importante. Viver já basta."

    É nessa época, passadas as festas, a alegria do encontro, o esquecimento momentâneo do que nos faz falta, a evidência de que se não existe amor, existe muita coisa que confundimos com ele, é que vai me dando a ressaca.

    Ressaca estranha do que teria ou deveria ter feito e não fiz. Maldita hora em que li um livro muito chinfrim, mas com um enredo que me pôs de sobreaviso e nunca mais deixou. Posso sentir o incômodo dele sempre, mas arreganha os dentes no começo de cada ano. O assunto é simplesmente a vida de uma mulher casada com dois filhos adolescentes que um dia resolve ser outra. Qualquer outra. Sai de casa sem avisar, acho que imaginando distâncias sem fim, e vai parar na cidadezinha mais próxima, onde se emprega, refaz a vida, percebe que a família dela acabou se acostumando e simplesmente...vira outra pessoa.

    E inspirada nessa historinha maluca é que começo a me agitar. Vocês já devem ter passado por alguma coisa parecida. Sentia quando morava no Rio de Janeiro e na nossa frente havia um prédio daqueles enormes de 500 janelas. Com o calor, todas sempre abertas e as pessoas vivendo suas vidas, separadas por finas paredes. Chegávamos a conhecer a bailarina, o homem das meias sujas, o doente, a que arrumava a casa o dia inteiro. E quem seriam eles, como seria estar na pele de cada um? Quantas vidas a serem vividas, o mundo estourava em possibilidades e você era somente um, e um ficaria.

    A emoção nos pega quando dentro de um trem, começando devagar a sair da estação, as luzinhas das casas de periferia vão passando, iluminadas, nem dá para distinguir as pessoas, mas estão dentro delas, comendo, rezando, chorando, se alegrando. Qualquer uma daquelas casas poderia ser a sua, qual o mistério que envolve você ser você, sempre você.

    Loucura das boas, mas o leitor há de convir que usamos pouco as muitas vidas a nosso dispor. E nessa época de Ano Novo, de festa de Reis, bate forte o desejo de cruzar mares, um Wanderlust, e começar um curso de cozinha brasileira para os croatas interessados. Para muita gente a única saída de fim de ano seria deixar seus pagos, arrebentar raízes, desfazer-se de um eu incômodo, de uma situação infeliz e se tornar outro na terra alheia.

    2015 foi um ano de Cambronne. Ou de merda mesmo, e muita gente quis fugir do real e se mudar para onde quisesse, como quisesse, conhecer alguém que lhe parecesse bem, se for mulher, que tenha curvas e o cabelo loiro, e se for homem, um queixo quadrado, inventar uma nova vida sem grilhões de passado.

    Pois me lembrei de um presente que o Luiz Horta me dá quando tropeça numa lojinha de Barcelona. É um caganer. No dia de Reis, as crianças que foram muito bem comportadas ganham presentes, balas, confeitos. As desobedientes, cocô e carvão, símbolo do inferno. (Já há cocôs de marzipan, no entanto.) Nas barraquinhas que vendem presépios nota-se uma figurinha totalmente insólita. É uma criança agachada, de gorro vermelho, olhos estatelados, agachado, fazendo cocô.

    É uma tradição muito antiga, não cabe ir às suas origens aqui, mas significa que o excremento é o que cai na terra do camponês e a fertiliza, segura as raízes do seu lugar de origem, é o amigo daquele que planta, é quem o segura no seu território, no seu quintal, faz sua vida feliz.

    O caganer, apesar de fora da manjedoura e da igreja, entrou na obra de Juan Miró, obcecado por fezes. Vocês podem ver no quadro, "a quinta, Montroig", no meio dos afazeres da família camponesa, um menino magrinho fazendo o seu bom cocô castanho, ligando-o à terra. É um pequeno caganer que apesar de sua situação um tanto esdrúxula, com a bundinha magra virada para quem observa a cena, bem, é sempre um caganer, um benfeitor.

    É com aquele excremento que se reconstruirão os campos depois da colheita, dali brota a esperança de dias fartos, de árvores pojadas, de gado bem alimentado de capim muito verde.

    É o caganer da esperança, o caganer obsceno, escatológico, que pode nos dar forças para 2016. Estamos até o pescoço de excremento para fertilizar nossas raízes, nos manter na terra e cultivá-la. Vale como nossa palavra de ordem para 2016, seguindo também o ditado popular dos catalães. Menjar bei cagar fort/ i no tingues por de la mort."Comer bem e cagar forte e não tenhas medo da morte."

    nina horta

    É escritora e colunista de gastronomia da Folha há 25 anos. É formada em Educação pela USP e dona do Buffet Ginger há 26 anos.
    Escreve às quartas-feiras.

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