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    Nina Horta

    Três tipos de gente

    20/01/2016 02h00

    Há livros que gosto de ler mais do que outros. E para minha própria surpresa são livros sobre literatura, ensaios críticos, gente que fale sobre os livros que já li ou que venha ainda a ler. E livros sobre comida, é claro. Os últimos ocupam quase todo o meu tempo, pois são a minha profissão. De vez em quando enfaro deles e me atraco com remorso a um livro sobre livros.

    O último que me pegou foi um do Cortázar, uma coletânea de aulas que deu em Berkeley, em 1980. Chama-se "Clases de Literatura" e é uma transcrição das aulas que deu lá e das respostas dadas a alunos.

    Por incrível que pareça nunca fui muito fã de seus romances, mas não largo nunca um livrinho que não é tido por ele como muito importante, mas eu o acho o mais importante de todos. Sei quase de cor. Chama-se Histórias de Cronópios e de Famas. Os textos são mínimos, com uns protagonistas estranhos que Cortázar dividiu em cronópios, famas e esperanças. Três tipos de gente. Vamos ver quem são.

    Cronópios: uns seres muito livres, anarquistas, muito loucos, capazes das piores bobagens e ao mesmo tempo astuciosos, cheios de senso de humor e de uma certa graça. Quando os cronópios viajam, encontram os hotéis cheios, perdem o trem. Chove pra burro, os táxis se recusam a levar os cronópios e, se levam, cobram um preço absurdo. Os cronópios pensam que acontece a mesma coisa com todos e vão dormir felicíssimos. Sonham que foram convidados para todas as festas e acordam felizes da vida.

    Se fossem cozinheiros, os cronópios estariam sempre alegres e felizes com sua brigada, andariam por entre eles com um riso alto, passariam a mão sobre suas cabeças, perderiam todas as receitas, e deixariam que os cozinheiros inventassem as suas, que remédio. Os cronópios amam sanduíches de queijo. Imagino que adorem botequins, onde entram pensando que é um três-estrelas "Michelin". Comem os torresmos ao som de Amélia que era mulher de verdade e ao perceberem uma formiga na sobremesa do Atala, cantam canções de nossos índios com voz altissonante e de mãos dadas. Saem sem pagar a conta com o guardanapo amarrado na cintura e a boca toda grudada de aligot.

    E o fama? O que faz um fama quando viaja? Um dos famas vai na frente, visita o hotel, averígua os preços, cutuca ao colchões, repara nas cortinas.Vai à delegacia e indica tudo que todos estão levando dentro da mala e dos bolsos. Não se esquece de ir ao hospital e ver quais os médicos que estão de plantão e quais são suas especialidades. Reúnem-se na praça para trocar as informações obtidas e depois vão tomar um drinque no Terraço Itália. Adoram coquetel de camarões e estrogonofe de carne bem macia com batatinhas palha. Os famas, quando estão com dor de garganta, vão atrás de um eucalipto para jogá-lo ao chão e mastigar suas folhas que são antissépticas e higiênicas em vez de comprar um pastilha Valda.

    Os famas estão sempre ajudando os cronópios, pois são os diretores das ONGs, mas os cronópios ne se fregan.

    Já os esperanças, nem viajar, viajam. Esperam que os outros venham vê-los, morrem de preguiça de sair e se estão com muita fome pedem um delivery de pizza.

    A minha preferência vai toda para os cronópios. Como vocês sabem, as tartarugas são impressionadíssimas com a velocidade e adorariam andar muito depressa, senão correr. Os famas passam por elas e nem dão bola. Os cronópios tiram da bolsa seus pinceis e pintam nas carapaças delas lindas andorinhas azuis e as convidam com toda a delicadeza para tomar uma caipirinha de caju.

    nina horta

    É escritora e colunista de gastronomia da Folha há 25 anos. É formada em Educação pela USP e dona do Buffet Ginger há 26 anos.
    Escreve às quartas-feiras.

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