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    Nina Horta

    Primitiva e irracional

    27/01/2016 02h00

    Realmente, essa coisa de falar que aquela comida foi a melhor do mundo, aquela batata a mais sequinha, não está com nada. Tudo meia mentira, a comida vale mesmo pelo que se sente na hora. Comer sozinho na ala da alimentação do shopping nunca deu tesão. Que eu saiba.

    Como foi que aquela vitela no centro da cidade, servida pelo velhinho de uniforme ensebado, foi a melhor do mundo? Improvável. E na hora do táxi o barulho esquisito nos pés, o horror, um rato, não, uma pomba desavisada.

    As frutas do pomar teriam graça sem os primos, as caras lambuzadas de manga, à espera que alguma coisa nova acontecesse, que o mundo revelasse um bocado novo que ainda não se conhecia?

    E, na lua de mel, o repeteco do frango à húngara, desde quando frango à húngara é bom, o nhoque talvez, mas nem o nhoque, era gosto para lua de mel.

    E não precisava ser amor, claro que não, amor por estarmos sentados à mesa esperando alguma coisa feita para nós, alguma coisa que o cozinheiro queria dar, que fosse dele para nós.

    Teria tido graça o primeiro jantar no Maní se não fosse a presença de Helena, recém-chegada da Espanha, ela sim, enamorada, ela sim sabendo recitar o nome de todos os bichos da terra e do mar, berberechos, múrgula, crista de galo, blat de moro, guisantes, o gosto do sal marinho, misturado com as amoras do sul, com a lembrança forte da avó, e da bolsa de pele de onça?

    Quem se interessa pela comida do sítio, na enorme mesa começando a ser furada pelo caruncho, os bancos duros, se não fosse a esperança de novos dias, o nheco-nheco das redes, a maresia, o gosto de clara de ovo das nuvens ainda preso nas gengivas, a lembrança do corpo nu da fêmea, do macho, do veado, não importa, aquele vulto na praia saindo do barco, soberbo, desconhecido. O pastel era sequinho? Talvez, mas não era o gosto dele que sentíamos, era a flor pura da cachoeira estraçalhando pensamentos bobos, cachoeira só pensa em coisa que valha a pena.

    Comida boa tira o sabor lá do fundo, das forças dos elementos, primitivos, incontroláveis, por isso temos fome outra vez. Vem do fogo, vem da brasas, cheira à fumaça, à fagulha.Tem sangue, tem pele, tem osso, é para comer com a mão, machucar o lábio, fazer força com o dente. Comida boa diz eu te amo, bebida gelada também conversa.

    A natureza fabrica a comida boa, auto-erótica, ela própria se fecunda e se transforma no grão e no capim, na carne e na cobra. Por que é só de vez em quando que elevamos a comida às alturas? Há dentro dela alguma coisa primitiva e irracional, bárbara mesmo, de volta às cavernas. Da galinha se come o peito e as coxas, da vaca o fígado, da ostra a carne pulsante, garfo e faca só disfarçam a avidez do bezerro. A comida boa se dá e você se dá a ela. É só essa a comida que vale. O resto é arroz com feijão, muitas vezes já frio no prato florido.

    nina horta

    É escritora e colunista de gastronomia da Folha há 25 anos. É formada em Educação pela USP e dona do Buffet Ginger há 26 anos.
    Escreve às quartas-feiras.

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