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    Nina Horta

    Hoje é dia de receitas

    02/03/2016 02h00

    Já é gostoso combinar um jantar entre amigos. E-mail para cá e para lá, quem tem alguma coisa gostosa em casa e quer compartilhar? Qual o menu? Quem vai fazer a sobremesa? E a casa? E assim vão todos de conversinha em conversinha até chegarem ao cardápio final, no dia D, com a boca aguando.

    Dessa vez começou com uma foto no Facebook, aquela foto que aparece na hora errada, ou certa, não sei bem, de uma variedade de peixes defumados numa vitrine nova-iorquina, a Russ and Daughters, cada peixe arrumado num pãozinho, cada peixe diferente do outro no corte, na defumação, no jeito de se enrolar embaixo do dill ou da papoula. E deu uma vontade comer aquilo! Um pensou em gravlax, outro em tiradito, em ceviche...

    Acontece que uma nova convidada deu sinal ao longe. Amiga do casal, Roseli Snedker, que mora na Dinamarca, paraense casada com dinamarquês. Famosa por ser boa na cozinha, fez cursos sobre como cortar peixes de todos os jeitos e maneiras, foi ficando uma pessoa mítica para os que se mantinham presos a São Paulo, só ouvindo falar nas qualidades da morena.

    Pois não é que Roseli apontava no horizonte... Fazer peixe para ela? Peixe defumado? Qual o sentido? Dizia ela que quando nos visitasse iria fazer comida do Pará.

    Pois juntamos os ingredientes possíveis de uma hora para outra para que ela cozinhasse do jeito que queria. Vocês já repararam que quando alguém está disposto a cozinhar dá uma preguiça de cão nos que estão à volta? Como se a atividade de um cortasse a adrenalina do outro. E espalhamos o que havia de comida. Pequenos camarões, mas muito frescos, um polvo, dez vieiras, paçoquinha de amendoim, legumes e verduras, tomatinhos, queijos, azeite de dendê trazido pela Neide Rigo lá dos cafundós, camarão seco miudinho, farinha solta, sabe-se lá de onde, e muita coisa do Japão pois o casal anfitrião vinha chegando de lá.

    Coitada da Roseli, coisa demais para escolher, avião mal baixou e já de fuso confuso tinha que inventar uma comida. É um tipo interessante, nascida no Pará, com as cores do Pará, cabelo liso escorrido, pele morena, olhos de contas de gude, buliçosos, e 20 e muitos anos de Dinamarca. Misturou, não misturou? Misturou. Um pouco aqui, um pouco ali, já não se sabe direito onde está o Pará ou a Dinamarca. O salmão selvagem ou a moqueca paraense?

    A nossa ideia era que escolhesse entre os ingredientes, acho que ela entendeu que era para usar todos e foi como formiga trabalhadeira usando um daqui, outro dali. Não se vai tirar o valor da dona da casa em tudo solícita, aquela que prepara o que não se repara, um dia inteiro antes, cozinha luzidia, utensílios básicos à mão, flores, guardanapos, toalhas, gelo. Nem do dono, um cozinheiro de mão cheia, ciumento de sua cozinha, daqueles bem implicantes, mas não com Roseli, essa merecia tudo, ele já a conhecia de longa data.

    Fomos ficando pela mesa de cozinha, a cronista aqui que vos fala e a amiga moça, de guirlanda de flores na cabeça, uma Ofélia rediviva. E como não fica bem cozinhar de coroa, ela cortou os pepinos com cuidado de amadora. E quem queria perder a aula, aquelas preparações e a boa bebida do dono? Ele já preparara de antemão (e olhe que estávamos no começo da tarde, pouco depois do meio-dia....) alcachofras assadas e depois as marinara num azeite de ervas, não os corações inteiros mas esfiapados em tiras pequenas e acho que retirara também a carninha das folhas, e as ervas nem nos contou quais eram, desfiadas também. Deu certo..

    Em outro pote, azeitonas niçoise com azeite de oliva, dente de alho, amassado com o lado da faca, flocos de pimenta calabresa, colherinha de sementes de erva doce um pouco tostadas, uma colher de cascas de laranja à julienne. E pães. Variados. Português, sírio, italiano, crostata, o que era para ser quente, quente, o frio, frio. Resistir, quem há de?

    Mas, como era cedo, tudo levava um tempo, Roseli vinha e sentava, comia um pouco, contava um pedacinho da vida, tão moderna, lembrava do pai, da mãe, do Pará, ria que só. De cabeça virada pra trás, tão gostoso estar no Brasil e uma saudade que já batia do marido lá sozinho sem a comidinha dela.

    Vamos lá, o anfitrião queria alguma coisa fresca, a sua especialidade de sopinha de iogurte natural com pepinos, hortelã e nozes, bem pouquinho, num pote pequeno para fazer o trou, bem refrescante. Verão, manhã, mesa de cozinha, um iogurte que tivesse um pique de azedo, talvez com uns cubos de gelo. Só misturar o pepino ralado grosso e polvilhado com sal (deixado a descansar uns 15 minutos com o iogurte e azeite, um poucochito de alho, hortelã, imaginem, da hortelã seca, sal, um pouco de água, até ficar liso e cremoso. Polvilhou grosseiramente com nozes, enfeitou com hortelã, mas da fresca, e desceu pela garganta como um refresco, mesmo).

    Isso já era uma sopinha gelada, mas Roseli preparava uma sopa morna com aqueles ingredientes que lhe tinham aparecido sobre a pia. Olhem, essa não vou saber explicar, não vi fazer, foi rápida, tenho vergonha de dizer que os ingredientes combinaram entre si, porque me parecia que iam contra todas as regras da boa combinação culinária. Mas, o que importa, contanto que fique bom?

    Tinha que aproveitar os camarões, afinal eles eram o tema principal, então uma sopinha leve de camarões frescos... e de camarões secos... e de umas ovas de esturjão... que estalavam no céu da boca.

    Mais tarde, mais tarde, confesso, bem mais tarde, já na mesa, teve uma saladinha de folhas verdes para abrir de novo o apetite. Mas, acreditem, de há muito os dois cozinheiros sem coque e muita garra vinham preparando o prato principal, o que ecoaria e deixaria o gosto essencial. Deixo a explicação para o dono da casa, o verdadeiro dono do polvo:

    Polvo assado com o caldo do próprio polvo

    INGREDIENTES

    • 1 polvo grande
    • 8 cebolas
    • 3 tomates
    • Ervas frescas e louro
    • 1 limão-siciliano
    • 1 cenoura
    • 1 beterraba para dar cor naturalmente]
    • 6 batatas
    • Alho e sal para finalizar
    • Vinho branco de boa qualidade

    MODO DE PREPARO

    O prato é preparado em duas etapas. É lento. Primeiro se limpa o polvo, e a curiosidade é que não se cozinha o polvo na panela de pressão, para não haver o perigo de erro e ele ficar com a textura absolutamente perfeita!

    Primeira etapa: assar o polvo. Limpar bem o polvo, principalmente a área dos olhos e interior da cabeça e cuidar pra que não fique nada de areia nos tentáculos. Temperar o polvo com o limão-siciliano e as ervas (importante, não colocar sal!). Pegar uma fôrma grande e untar com azeite. Cortar as cebolas e os tomates em rodelas finas, fazer uma cama com a cebola e os tomates na fôrma, colocar o polvo sobre a cama, regar com azeite e cobrir com o restante da cebola e do tomate, sem colocar sal, e cobrir a fôrma lacrando com papel alumínio com a parte polida voltada para a comida. Preaquecer o forno (a 200ºC), colocar o polvo para assar por 1h50 (não precisa abrir o forno nem conferir se está bom se o forno estiver a 200ºC e a fôrma lacrada com o alumínio –não tem erro), retirar do forno. Primeira etapa concluída!

    Segunda etapa: cozinhas as batatas com casca deixando-as durinhas e reservar! Quando abrir o alumínio você irá notar que o polvo estará com a consistência perfeita e que diminuiu muito de tamanho e toda a água dele virou um caldo abundante na fôrma. Retirar o polvo, cortar os tentáculos e descartar a cabeça próximo da região dos olhos. Pegar todo o caldo da fôrma e pôr em uma panela, juntar a meia taça de vinho branco e reduzir o caldo até um terço do volume e coar. Em outra fôrma grande espalhar azeite, colocar cada batata com um tentáculo ao lado e meia cebola, mais um pedaço da cenoura e da beterraba, colocar ervas por cima e cobrir com o molho reduzido, voltar para o forno a 300ºC por 15 minutos sem cobrir. Retirar do forno e servir o prato com um tentáculo, uma batata, meia cebola, um pedaço de beterraba, um pedaço de cebola. Colocar um pouco do molho da assadeira e fim da receita principal.

    Esquecemos das vieiras, tudo bem, amanhã é outro dia.

    Agora, a sobremesa é para a curiosidade de vocês –foi inventada pelo dono da casa e confesso que nem a receita perguntei. Era uma musse de matchá com farofinha de "cherry blossom" e uma nuvem de castanha-do-pará, tudo sobre lemon curd.

    (Mari Hirata vem trazendo os doces feitos com matchá há muito tempo e agora acredito que pegaram de vez. É bom ver a Mari sempre com uns 15 anos na frente das modas, deixa a gente segurar com as novidades dela. A receita não cabe aqui, fica demais, vocês podem me pedir, se quiserem.)

    Sabem quanto tempo ficamos cozinhando, comendo e conversando? Quase 12 horas. E não foi pesado, e não pareceu daquelas degustações que não têm fim, ninguém se importava se um ingrediente se repetisse de um prato a outro.

    A dona da casa teve paciência de fazer cafezinho, chá e sucos, uma paz grande se estendia pela casa, a gata veio assuntar, as conversas começaram a minguar, surgiram umas fofocas novas fruto do muito champanhe que o anfitrião trouxera da viagem. Roseli, a dinamarquesa do Pará, recostou-se no sofá e dormiu com cara de anjo de jet lag e a coroa de flores de Ofélia já se desmanchava em pétalas saciadas.

    nina horta

    É escritora e colunista de gastronomia da Folha há 25 anos. É formada em Educação pela USP e dona do Buffet Ginger há 26 anos.
    Escreve às quartas-feiras.

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