• Colunistas

    Thursday, 02-May-2024 04:23:42 -03
    Nina Horta

    Segredo de polichinelo

    16/03/2016 02h00

    Vou ter que confessar que a vida passa depressa, que quase não se percebe, às vezes aos trambolhões, às vezes doce e suave. Gostei mais dos pedaços de paixão, de amor, de conquista, de leve namoro com as coisas e com as gentes. Nada supera esse sentimento de gostar. Nem grandes honras, nem dinheiro, nem prêmios, tudo passa sem deixar rastro. Um rastrinho, talvez.

    E acontece que agora, na velhice, me chamam para falar de cozinha. Quando foi e por que me apaixonei por ela? Como foi que ela respondeu? E o que se achava em torno, o que se via, como era a vida?

    No outro dia vi perguntarem a Costanza Pascolato como havia sido o processo de envelhecer. Meio de olhos arregalados, respondeu por duas. "Estava tão ocupada em viver que nem percebi." Pois é assim, envelhece-se mais ou menos de dez em dez anos. E tenho ainda por cima a crença de que aquilo que não é nomeado não existe. Não conte a idade que ela custará mais a chegar.

    É problema de família. Minha avó brigou com meu avô porque ele só subtraíra dez anos da idade dela na portaria do hotel. Minha mãe jamais confessou a nós, filhos, sua idade, porque era um ano mais velha que meu pai e isso não se usava absolutamente, e ele ria à socapa daquela bobeira e era cúmplice, jamais traiu aquele segredo de polichinelo.

    De repente, na minha vida surgiram homenagens, gente que quer me ver, me apalpar, ver de que matéria fui construída para durar tanto. E querem que eu fale. O meu falar não se desenvolveu, era muita leitura, depois muita escritura e falar dói, gagueja, sai errado. Falar o quê? Um dia desses, de folga de envelhecer, tenho que parar e destrinchar a vida como se destrincha uma galinha. Por que gostei de comida e não de música. Aliás, por que adorei mexer com comida e saí cretina musical? Quando foi que meus olhos se abriram para uma farofa na manteiga e não para os números perfilhados de uma equação cruz-credo?

    Em que altura das viagens comecei a me interessar mais pelos mercados do que pelas bolsas de moda? Quando foi que percebi que saia de um luto quando consegui apreciar as cores de uma lagosta?

    Quando foi que o paladar falou mais forte e me fez parar no México para provar goiaba verde com sal quando o marido queria ir ao museu?

    Ah, goiaba me faz lembrar as férias na roça, onde não existiam jardins arrumados nem concertos, sons só da boiada se atropelando e pouca banha espirrando no fundo da frigideira esperando o lombo de porco. E as mangueiras pojadas com as mangas gordas e amarelas e troncos de musgo. E a comida soberba da avó comandada em fogo de lenha. Eram os cheiros, os gostos, que chamavam mais de perto e os primos bonitos de olhos sedosos e cílios compridos e bocas vermelhas e cabelos louros como espigas de milho.

    Vocês percebem, não posso alinhar tudo isso num discurso racional, interessante, que venha agradar um pequeno público que seja. Só se um dia me sentar e me botar a racionalizar o gosto da goiaba verde, a gosma da manga, os fios da manga sapatinho grudando nos dentes, a água muito fresca na caneca de lata gelada, a bilha impossível de fria, o golpe forte da água da cachoeira, a umidade quase que insuportável do poço.

    Imagino que se tivessem me deixado seguir o circo que me passou pela vida, a menina circense que ficou minha amiga, teria aprendido a pular entre cordas, a montar com um pé só o cavalo pangaré. Mas não, mal queria me levantar daquele ninho de gentes conhecidas, me puxavam para trás. Fora dele era o perigo, era a tentação do mundo. Fica aqui ao pé do fogão, com essas frutas, essas águas, essa terra e muitos livros. Lá longe não se sabe o que pode acontecer. Então, me agarrei à terra e sua comida, borralheira, esquentando junto do fogo, lavando a alma na correnteza, escutando o cantar do galo, escrevendo redações na carteira com caneta de pena e tinta azul esverdeada, não me perguntem por desenvolvimentos, não me peçam teorias, não queiram ver mais do que existiu. Foi assim, desculpem. Foi assim, não mais que isso.

    nina horta

    É escritora e colunista de gastronomia da Folha há 25 anos. É formada em Educação pela USP e dona do Buffet Ginger há 26 anos.
    Escreve às quartas-feiras.

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024