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    Nina Horta

    Comida em discurso poético

    23/03/2016 02h00

    Há um livrinho que nem sei se vocês gostariam, falando principalmente de mulheres que escreveram sobre cozinha a partir do século 20. Mas não são brasileiras, são duas americanas e uma inglesa. O foco principal está em M K Fisher, Elizabeth David e Alice B Toklas. Verdade, são deliciosas nos seus textos, e largaram sem remorso os livros de cozinha tradicionais, compêndios bons, mas sem a menor pretensão de serem lidos como romances e sim como manuais do bem cozinhar.

    Todas as três eram mulheres que gostavam da domesticidade, mas tinham um conceito muito aberto sobre ela. Qual era a diferença dessas mulheres para as que escreviam receitas da paróquia, colecionadas de casa em casa com o nome da autora? Eram diferentes, cabeças mais abertas, menos preconceitos. Cada uma delas tinha uma ligação sensorial com o lugar em que estava e queriam, além de cozinhar, ter prazer no ato de transformar as comidas. O que não era nada comum. As primeiras culinaristas estavam muito impressionadas com as técnicas e as receitas, nem se importavam se seu nome aparecesse ou não na coletânea armada por elas, as gravuras eram geralmente bem infantis, e aqueles livros faziam parte da sua faina diária de cozinheiras.

    Essas três mulheres que mencionei antes, a David, a Fisher e a Toklas ligavam o comer com a vida, com aventuras, viagens, amores, prazeres, leituras. M. K Fisher, por exemplo ousou fazer biografia, ter pensamentos e hipóteses e opiniões sobre comida. Escrevia muito bem. A comida é uma metáfora que ajuda a colocar em pé a sua identidade feminina, seus gostos, suas vontades, pelo mundo afora. Não só gosto por comida, mas gosto por leitura, por lugares que ela ia conhecendo, por namorados que colecionava, por lembranças de pão com ovo na lancheira.

    Elizabeth David era uma inglesa extremamente...inglesa. Muitos até acham que ela conserva um ranço de governanta inglesa. Fazia questão de saber tudo sobre comida, de escrever dando a sua opinião, por vezes até um pouco agressiva. Todas elas usavam o humor como instrumento básico. Elas eram gastrônomas, gastronomia querendo dizer que cozinhavam e que escreviam sobre o que cozinhavam. A transformação da comida em discurso poético.

    Como trabalha Adelia Prado, a nossa poeta. Consegue fazer do galinheiro, do ovo, do tutu de feijão, da cerca de bambu, das boninas, uma oração ao seu namorado, ao Deus que a acompanha na vida, uma espécie de freira glutona e amorosa. Essas novas escritoras ou faziam da suas cozinhas um lugar mágico ou partiam delas para pesquisar os outros mundos e outras identidades e se maravilhavam com o diferente, crescendo seus limites de sabedoria e de sabor. Seus livros eram de culinária, sim, mas podiam ser lidos como literatura.

    Para entenderem melhor, Dona Benta escrevia livros de culinária, Guilherme Figueiredo literatura; Gilberto Freire, literatura. Para mim há uma homem americano que escreveu um dos melhores livros de comida. É James Beard, no seu Delights and Prejudices. Considero o primeiro livro dele como um dos mais bem estruturados e inteligentes que existem. Daqueles que usam a domesticidade para saudar abertamente o prazer que a comida pode dar.

    Alguns dos livros são memórias domésticas, em que a comida aparece sempre, mas não é o único motor a conduzir o livro. Comida como arte, o prazer da comida, um formato nada convencional que incorpora a anedota, a referência histórica, as alusões literárias. Uma preocupação com a expressão elegante, a receita ou a ocasião bem escrita, e um apetite pelo inusitado.

    Elizabeth David e Toklas e MK Fisher, principalmente Elizabeth David, escreveram livros de cozinha que se apoiam completamente no poder evocativo da linguagem. Pena é que traduções são quase sempre traidoras e todas essas gastrônomas perdem muito na viagem.

    Nunca ouvi falar que Delights and Prejudices, de James Beard, tenha sido traduzido, mas eu o considero um estopim para a leitura dos gastrônomos. É de 1964, tem receitas, tem memórias, reflete sobre a comida, conta de suas viagens. Durante a guerra, era pacifista, e veio parar no Rio, tomando conta de um restaurante à beira mar.

    Sabe o que aconselho? Que todos aprendam a ler inglês. Nos tempos de hoje faz muita falta. É só começar e quando se abre os olhos já se sabe. Agora, de todos os nossos escritores brasileiros, se tivesse que escolher um para fazer um livro de receitas, sem dúvida nenhuma me agarraria ao Pedro Nava, sensual, erudito, minucioso, bom de palavra, forte, memorialista.

    Se alguém quer aprender a escrever sobre cozinha e comida, leiam o Pedro Nava de cabo a rabo. Mal não vai fazer. E aprenderemos o que é escrever bem sobre comida e todo o resto.

    nina horta

    É escritora e colunista de gastronomia da Folha há 25 anos. É formada em Educação pela USP e dona do Buffet Ginger há 26 anos.
    Escreve às quartas-feiras.

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