• Colunistas

    Saturday, 04-May-2024 20:37:28 -03
    Nina Horta

    O valor de um pimentão

    20/04/2016 02h00

    De vez em quando pensamos que somos o único país a sofrer e temos vontade de voar para outro onde as coisas funcionem.

    Peguei um livro sobre crise e vi que, em 1939, um quarto da população da Grã-Bretanha estava subnutrida, 62 de cada 1.000 bebês morriam antes de um ano e, em Glasgow, mais de cem. (Em Paraty, as mães dizem com naturalidade que "morreu unzinho"). Os ricos davam um jeito na saúde com médicos particulares, mas os pobres se acotovelavam diante dos hospitais sem serem atendidos.

    Com a guerra, por incrível que pareça, as coisas melhoraram. Lord Woolton, o Ministro da Comida declarou que era impossível garantir que todos comeriam a mesma coisa, a tarefa dele era ver se cada um recebia a quantidade mínima de proteínas e vitaminas necessárias para assegurar um bom estado de saúde. Imprimiram-se os cupons de racionamento, os famosos cupons verdes, que levavam as grávidas, os mais velhos e as crianças com menos de cinco anos para os primeiros lugares das filas, para escolher laranjas e bananas, meio litro de leite diário e a quantidade dobrada de ovos. E a ração de carne.

    Por seis anos tinha gente que suspirava ao ver uma casca de banana, quase chorava ao pensar numa boa salsicha e num chá forte. Se uma casa era derrubada pelos aviões e dentro dela estava o carnê de cupons, era preciso requerer outro cartão provisório, com dificuldade. Até a família real fazia regime, presuntada em prato de ouro. Churchill podia comer e, quando lhe mostraram a porção semanal de comida de uma família, aprovou, satisfeito: "Nada mau para uma semana..."

    O racionamento durou até 1954. Já podemos explicar por que as vísceras são comidas na Europa com gosto, enquanto aqui, nas cidades grandes, são pouco consumidas. As comidas que emocionavam os ingleses porque, afinal, eram comida, eram orelha recheada, pata em gelatina, torta de canela de vitelo, salsichas gratinadas...

    Gorduras como margarina, manteiga e outras para cozinhar não passavam de uma xícara semanal.

    Apresentaram a Churchill a dieta básica, com o quanto alguém precisava para viver: 25 g de pão, meio quilo de batatas, duas colheres de aveia, uma de gordura, 15 g de vegetais, meia xícara de leite por dia, com o que se pudesse obter a mais ou da mesma comida, ou um pouco de grãos, carne, peixe, açúcar, ovos, e frutas secas. Foi aí que apareceram as nutricionistas, profissão nova.

    Leite em pó tornou-se uma iguaria. Uma lata por mês para as famílias. Apareceu o óleo de fígado de bacalhau para crianças com menos de dois anos e grávidas. Depois de Pearl Harbour, surgiram o suco de laranja e tabletes de vitaminas cobertos de chocolate. E, imaginem, as crianças melhoraram sobremaneira e até morriam menos.

    Os que tinham dinheiro em 41 conseguiam comida em lata. O Mercado Negro grassava impune. Em 1941, foi introduzido um sistema de pontos. Além do racionamento, cada pessoa tinha direito a 16 pontos de enlatados de peixe, feijão, macarrão, sopa, tapioca e, eventualmente, aveia, outro cereal e frutas. (Se você pega um livro de receitas dessa época, se assusta com a quantidade de latas.)

    A compra de comida era uma batalha de filas. As contas que as mulheres precisavam fazer para bem distribuir o racionamento em seus cupons era diária. O Ministério da Informação tentava dar uma alento aos ingleses. "A dona de casa deve se sentir feliz ao saber como contribui para o esforço de guerra. A comida é uma munição como qualquer outra. Esforcem-se por receitas criativas." E elas se esforçavam. Ferviam a pele dos animais para conseguir um restinho de gordura. As receitas proliferavam nos caderninhos. Por exemplo, aveia era tudo.

    Seis colheres de aveia, três colheres de gordura de rim, xícaras de água fria, uma cebola, ou nabo. A apresentação também era uma batalha. Só se podia comentar os ingredientes depois que todos haviam comido, nunca conversar sobre a guerra durante a refeição e sim encontrar assuntos agradáveis.

    Era preciso fingir e e aguentar com cara boa todas as faltas. Substituições. O café feito de pinhões e bolos caseiros com bicarbonato. Molho para salada com óleo de soja, na verdade, os livros de cozinha da época estavam cheios de sobremesas sem açúcar, creme de leite falso, e cozimento sem gás.

    E apareceram as campanhas, como "A pá e a Vitória". E se cada um plantasse sua comida? Os grandes jardins ingleses e parques, jardins dos grandes castelos, se tornaram hortas, vasos em Piccadilly, lajes cobertas de repolhos, pilotos plantando rabanetes nos aeródromos. As crianças colhiam frutas silvestres. Coisas estranhíssimas eram comidas e os pratos se pareciam com alguns de nossos melhores restaurantes de hoje, com flores comestíveis e matinhos. Tomate e cebola eram raros. Uma dona de casa usava uma cebola por um mês para dar gosto à comida e só então comiam a cebola.

    As frutas eram quase impossíveis. Uma visitante do zoológico viu um macaco comendo uma banana e se indignou, só para descobrir logo que era uma batata vestida de banana para entusiasmar o macaco. Nossa amiga Neide Rigo seria a Ministra dos Alimentos com suas comidas econômicas e matinhos comestíveis.

    "Dig, dig, dig, and your muscles will grow big!" Era a ordem do dia. Junto com a falta de comida chegou a falta de gás, de eletricidade, carvão... Foi a glória da cesta de palha, um caixote cheio de papel de jornal e feno onde você colocava a comida bem quente, tampava hermeticamente e ela se cozinhava no seu próprio calor. Panelas sobrepostas no vapor. A panela de pressão.

    As sopas eram o mais conveniente. Funcionavam como uma lata de lixo onde se punha tudo que sobrava ou era impossível de comer. Sopas ralíssimas engrossadas com aveia. As galinhas tiveram seus momentos de glória por causa de seus ovos, mas muitas vezes não havia como alimentá-las.

    Afinal de contas, descobriu-se que comer pouco era bom para a saúde. Pessoal mais esbelto, colesterol baixo, menos doenças de coração.

    Leiam um panfleto:

    Batatas, uma comida que produz energia, cheia de vitamina C e vitaminas essenciais.

    Se tiverem pouca carne sirvam-se de muita batata.

    Use a batata como base de todos os pratos.

    Todos os doces do chá podem ser feitos com batatas. Para dar impressão de açúcar, use cenouras nas massas.

    Faça sanduíches de batatas bem temperadas

    O que se economizou... o que se comeu de cascas e matos.... Os substitutos são interessantes.

    Ovos - ovos desidratados;

    Leite - leite em pó;

    Manteiga - margarina;

    Creme de leite - margarina batida com baunilha;

    Farinha de trigo - batata ou aveia;

    Maionese - leite evaporado com vinagre;

    Suco de limão - suco de ruibarbo;

    Passarinhos, coelhos, aves selvagens, esquilos, tudo servia como comida.

    É claro que havia mulheres mais jeitosas seriam as nossas chefs de hoje, conseguindo refeições até gostosas. Mas o mais comum mesmo era uma comida horrível, com a cozinheira e aqueles que ela alimentava se acostumando com um tipo de comida que até os anos 1950 não mudava, uma coisa insossa e sem graça. E é aí então que aparece Elizabeth David, que passara a guerra no Mediterrâneo e sabia o valor de um pimentão, uma laranja, um limão.

    E a história do renascimento da comida na Europa, e principalmente na Inglaterra, é uma outra história que fica para outra vez.

    nina horta

    É escritora e colunista de gastronomia da Folha há 25 anos. É formada em Educação pela USP e dona do Buffet Ginger há 26 anos.
    Escreve às quartas-feiras.

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024