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    Nina Horta

    Cada um se concentra como pode

    08/06/2016 02h00

    Bem, estávamos falando em como escrever...no caso, sobre comida. E O QUE NOS PARECE É QUE OS CONSELHOS QUE VALEM PARA ESCREVER SÃO OS MESMOS, EM GERAL.

    Conversamos sobre LEITURA, coisa obrigatória para quem quer escrever bem. É óbvio que com uma mala cheia de conhecimento e de estilos de escrever vamos nos sair melhor. Mas...tenho cá minhas dúvidas de que isso seja obrigatório... No entanto, o mais comum para alguém que quer se tornar um escritor é ter sido, primeiro, um grande leitor.

    Será que basta? Não. Com certeza precisa ESCREVER também. E escrever seduzindo. Logo vem à cabeça a ideia de ter um diário, e mais uns caderninhos de bolso que possam servir a qualquer hora do dia ou da noite. Quantas vezes não tivemos uma inspiração que poderia ter nos ajudado e muito, para ser totalmente esquecida horas depois, ou ser lembrada e reaparecer sem adrenalina, completamente murcha?

    Alguma coisa é necessária para que se comece a escrever? CONCENTRAÇÃO, é o que todos dizem. Cada um se concentra como pode. Eu acendo todas as luzes, ligo a TV, leio um bom livro, tudo junto, para me inspirar, para gerar o esforço de me desligar daquilo. Mas o silêncio total, a meditação me deixam bege. O banho quente, de banheira, é tiro e queda. Leva a um torpor criativo de não se botar defeito.

    Uns se concentram mais, outros menos. Tinha um amigo entre aspas, americano, que mandava newsletters mensais. Aos poucos começou a escrever livros. Dava para ver como se concentrava em cada coisa que escrevia para transmitir uma ideia. O nome dele é John Thorne. Olhem só ele, ainda jovem, pobre, querendo ser um escritor e um cozinheiro, mudando de casa, solteiro e começando montar a cozinha...

    "Aí cheguei no departamento de facas. Claro que havia muitas delas fora das possibilidades de meu bolso. Imediatamente vi uma faca que desejei intensamente, ali, na hora, e que dava para comprar. Apesar de não ter marca aparente, a loja dizia que era francesa. Nenhuma faca do mundo poderia ser mais utilitária do que aquela. Tinha uma navalha e um cabo e pronto. Não me lembro exatamente quanto custou, mas com certeza foi menos do que dez dólares. A faca, três décadas depois está aqui ao meu lado enquanto escrevo. É feita de aço carbono, e o metal se estendia pelo comprimento total da faca. As duas metades de madeira do cabo eram presas por pregos de cobre. Jamais seria confundida com uma faca de chef. Não se pronunciava absolutamente sobre o gosto ou a habilidade da pessoa que a usasse. Era simplesmente um instrumento que dizia ao mundo "eu corto".

    Para mim era o bastante. Os sinônimos para cortar são quase sempre violentos, mas com essa faca toda a minha experiência tornou-se magicamente sensual. A lâmina escorregava através de um pedaço de carne como se estivesse cortando manteiga, e sua facilidade em ser escorregadia me deixava até um pouco tonto, pois poderia me cortar. Por mais que se faça uso de um canivete ou faca afiada, na hora H eles nos deixam com uma certa tensão alerta e a prática te ensina a levar essa tensão para a ponta da faca de modo que você sinta o que está fazendo.

    Em outras palavras a faca deu vida ao ato de cozinhar. Não duvido que um bom cozinheiro possa preparar boa comida com utensílios dos mais vagabundos, porque eu mesmo já fiz isso. Mas tendo testado suas habilidades, enfrentado o desafio, qual a graça? Utensílios baratos nunca são neutros. Humilham você constantemente, desvalorizando seu serviço, tirando-lhe a qualidade. E quando você resolve enveredar pelo caminho da cozinha, de verdade, pode apreciar a liberdade e a alegria de quando pela primeira vez pôs a mão nesse tipo de utensílio."

    Perceberam? O cara é focado até demais, objetivo, afiado como a faca dele. É um exemplo de escrita, bem sem firulas. Temos, um dia, de escolher o nosso estilo. On-line darei mais exemplos. Por agora vamos dar só uma espiadinha no nosso maior memorialista, Pedro Nava.

    Já tentei imitá-lo, escrevendo à "façon de", porque parece fácil, as palavras jorram, uma atrás da outra, num conjunto homogêneo e forte. Quando acabei, cotejei as duas e fiquei vermelha.

    A minha cópia parecia um tatibitate infantil comparada com a maestria dele.

    Vejamos: "Lá vinham eles, os doceiros do Largo do Rio Comprido... A cabeça encimada pela torcida de pano. Era sobre esse turbante que descansava a caixa de doces, envidraçada, aos lados, como o esquife de cristal de Branca de Neve, coberta em cima, por uma tampa forrada de oleado e tendo quatro pés, como mesa, para a hora comovente da escolha entre as brevidades desérticas, os úmidos quindins, as cocadas brancas e pardas —conforme feito com açúcar refinado ou rapadura. Ao levantar-se a tampa, vinha aquele cheiro envolvente e sedativo em que as narinas surpreendiam tonalidades altas do odor do limão e da laranja; das claras, do leite, do coco, das farinhas; as baixas e mais surdas do ovo, do cravo, da baunilha, do melaço. Eram cromáticas como as cascatas de sons que o doceiro tirava do instrumento com que se anunciava... e a ondulação sonora e táctil entrava pelos meus ouvidos, pelas minhas mãos, enchendo minha boca da água da antecipação do gosto."

    Não é para desanimar. Já falamos da LEITURA, da ESCRITA e da CONCENTRAÇÃO para chegarmos a um bom resultado. RESTA SABER SE COM TEXTOS COMO ESSES O EDITOR OU RESPONSÁVEL VAI TE RECEBER.

    On-line no Face, temos colunistas da Folha, Nina Horta, com ilustrações e mais trechos bem escritos.

    nina horta

    É escritora e colunista de gastronomia da Folha há 25 anos. É formada em Educação pela USP e dona do Buffet Ginger há 26 anos.
    Escreve às quartas-feiras.

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