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    Nina Horta

    Escreva usando as palavras que usaria com seu vizinho

    27/07/2016 02h00

    A última conversa nossa sobre "como escrever" foi sobre os percalços de editar um livro de culinária ou de comidas. Ou qualquer livro, imagino.

    Sempre fico reconfortada ao ver um autor contar sua experiência na cozinha. E se ele não é um Narciso, se usa a linguagem dele, se expõe suas ideias sem muitas firulas, acaba por escrever um bom livro.

    Concordo que achar o tom não é lá muito fácil, é até bem difícil, e tanto de um livro depende desse marvado tom! Um dia, quando você já tiver desistido, ele aparece. Não desgrude mais dele, o estilo é o seu coringa.

    Arrumando estantes, parece que não faço outra coisa na vida, reencontrei um livro, um livrinho fino da Mari Hirata. E como a Mari, se não me engano, está a uns dois meses de publicar um livro novo, trabalhadíssimo, passei os olhos pelo antigo.

    Chama-se "As minhas receitas japonesas" e saiu pela Publifolha. É uma pequena obra de arte, publicada em 2008. Há oito anos já falava sobre Tóquio como uma cidade estrelada, cheia de bons restaurantes. Olhem um comentário dela:

    "Tomando como exemplo um restaurante que ganhou três estrelas, o Sukiyabashi Jiro (de sushi), meu comentário pessoal é: não é o mais gostoso, nem o mais caro (apesar de uma refeição custar mais de US$ 300, nem o mais bonito (pelo contrário), e o serviço é daqueles ideais para masoquistas. Sem falar que não tem banheiro e fica no subsolo ao lado da entrada do metrô.

    Mas, confesso, eu também fui fã do Jiro San. Achava o máximo ser maltratada e ir ganhando aos poucos (e pagando muito por), sua simpatia. Hoje, depois de décadas de Tóquio, descobri que podemos comer melhor sendo bem tratados, em lugares confortáveis e pagando menos."

    Bom, já está colocada como tendo opinião, sem se importar com filas e jornais e revistas. Acha o que acha e pronto. Claro que estudou a cerimônia do chá. O professor pediu que ela olhasse para fora da sala e contasse o que via. "Bem, na minha frente tem um caquizeiro carregado de frutas verdes." Ao que o professor respondeu: "Então vamos fazer doces no formato de caquis, levemente rosados, para o chá de hoje, há que se estar sempre um passo à frente da natureza".

    Sutilezas, tradições, religião, estética, Mari Hirata vai explicando cada coisa com exemplos cotidianos e prazerosos. A certa altura ela resolve desvendar o segredo de qual é o prato número um do Japão. Já vai avisando que não é nem sushi, nem sashimi, nem tempurá, mas uma comida caseira, o kareirasu. E de que se trata o kareraisu? Curry com arroz, acreditem se quiserem. Um curry bem caprichado, cheio de legumes, e só tem uma pequena diferença dos que estamos costumados. Leva um pouquinho de farinha de trigo para engrossar.

    Os ingleses foram pegar o curry na Índia e no caminho juntaram essa farinha, que faz pouca diferença. E os japoneses comem uma vez por semana, já passaram daquela onda de enjoar de curry. É comfort food.

    Moderna, nos oferece sites, vídeos e um deles é o museu do restaurante Kitcho o Yuki Museum of Art, onde você pode apreciar a preciosa louça deles usada na cerimônia do chá, com mais de mil peças.

    Percebem? Se aquele que vai escrever sobre o assunto tem uma noção bem firme do que está fazendo, é antenado, gosta de comer, é só passar para o papel a sua experiência usando as palavras que usaria para conversar com o vizinho.

    *

    Gostariam de ler um exemplo de croniqueta simples, escrita por ela? Escolhi a mais simples, sem uma palavra diferente ou difícil. Mas, ela é assim, essa é Mari Hirata e cada um de vocês também pode se expressar bem suscitando interesse. E tem mais: todas as aulas e novidades que ela apresenta vão aparecer em São Paulo, já sem estranhezas, de dez a 15 anos depois.

    Desbrava fronteiras, ensina a fazer ovos de 40 minutos e bolo de matchá, quando até as palavras soavam estranhas para nós.

    *

    Vejam essa, um exemplo de concisão, não usou uma palavra que pudesse nos confundir e explicou. Quase desenhou. Bem, bem simples.

    O outro ritual do chá

    Se os franceses têm as vendanges (colheitas de uvas para fabricar o vinho) no outono, nós, japoneses, temos o ritual da colheita do chá verde na primavera. Depois de longo inverno, maio e junho, com seus dias ensolarados, são um convite para as atividades ao ar livre. No Japão as estações do ano são bem definidas e é reconfortante marcar a mudança saindo com a família para colher brotos e folhas do arbusto.

    O chá chegou ao Japão há 1.300 anos, trazido por monges budistas chineses. No início, o tipo chinês não foi muito apreciado; cheiro e sabor eram muito fortes para o paladar nipônico.

    Com o tempo, os japoneses desenvolveram seu próprio processo de produção e é esse processo que confere personalidade a cada tipo: apesar de parecerem tão diferentes, os chás verdes (não fermentados), chinês (semifermentado ) e preto (totalmente fermentado) são feitos de folha da mesma planta, a camélia sinensis.

    Os japoneses consomem o chá verde como os brasileiros bebem café —porque gostam! O consumo já foi bem maior, hoje ele concorre com um bom expresso, o chá preto ou uma variedade dos chás chineses —mas continuamos a beber nas refeições ou acompanhando um docinho, uma média de três a quatro tacinhas por dia.

    Como nos vinhos, podemos ter anos bons ou ruins, mas nenhum chá verde fica melhor com o tempo; ao contrário, ele só tende a perder seus aromas e sabores delicados. Na verdade, já no momento da colheita as folhas desencadeiam seu processo de fermentação natural, seus fortes taninos começam a oxidar e elas escurecem rapidamente.

    Na produção do chá verde japonês, no mesmo dia em que são colhidas, as folhas são passadas no vapor por 70 segundos e depois desidratadas para evitar a oxidação e manter a cor original e o sabor suave e amargo. É nesse amargo que se concentram os flavonoides mais importantes do chá verde, o catechin, cujas virtudes são hoje atualmente aclamadas no mundo inteiro (muitas vezes exageradas).

    O produto de boa qualidade usa apenas as folhas de cada galho, colhidas tenras, no início de maio, quando o sol não é ainda tão forte. Alguns tipos como o gyokuro, também são cobertos com telas escuras, para não receberem nenhum raio solar.

    Como um bom grão de café, o chá de boa qualidade deve ser colhido à mão, e depois de passada pelo vapor, cada folha é enrolada lentamente até ganhar um formato de agulha. Mais tarde, em contato com a água quente, a folha se abre, soltando lentamente todos os aromas e sabores.

    É mais ou menos o que acontece com o paladar: na boca o gosto amargo do início vai aos poucos se transformando em adocicado e sua cor verde é um verdadeiro colírio. Se ainda por cima, faz bem à saúde, tanto melhor.

    *

    Aqui traz uma novidade. Sommelier de vegetais.

    É mundialmente sabido: os japoneses adoram estudar, ter diplomas, se especializar. Não basta terem os melhores chefs de cozinha do mundo, precisam também usufruir do melhor serviço (e isso eles têm), das melhores caves e também dos melhores sommelieres, que nos indiquem os melhores vinhos.

    Agora, o máximo nos restaurantes é ter um vegetable e fruit sommelier ou vegetable meister, o especialista em verduras e frutas que aconselha sobre o melhor pedido para a época, considerando variedade e harmonia no prato. (Observação, só mesmo os japoneses para misturarem num único título tantas línguas.)

    A coisa é séria. Quem criou o título foi a Associação Japonesa de Frutas e Vegetais, organização sem fins lucrativos ligada ao governo e às cooperativas agrícolas. Essa associação oferece aulas de especialização aos interessados em se aprofundar nessa área. Existem três níveis de diplomas, e desde a sua fundação, em 2001, a associação já formou mais de 10.000 especialistas que agora trabalham em restaurantes, supermercados e até em pequenos verdureiros de bairro.

    Hoje, comprar uma boa verdura ou fruta no Japão sai mais caro do que comprar carne ou peixe. A saladinha deixou de ser acompanhamento e virou prato principal.

    Não é à toa que os chefs franceses como Michel Bras ou Alain Passard fazem sucesso por aqui.

    O gargoillou de vegetais, salada com mais de 20 vegetais e ervas, misturados (de Bras) ou o navet rose á la croûte de sel, nabo redondo assado no forno (de Passard) são pratos fetiche, bastante imitados pelos chefs japoneses.

    O bom chef precisa viajar e conhecer os produtores, que são outro tipo de especialistas. Você passa horas conversando com eles e, se gostarem de vocês, da sua cozinha e da maneira de utilizar os produtos deles, pode ser que lhe vendam uma parte da produção. O preço, com certeza, não vai ser o mesmo daquele caixote do Mercadão.

    Atualmente as verduras mais badaladas do Japão são cultivadas na região de Kyoto. As terras férteis e o clima rigoroso produzem pérolas, às vezes você nem precisa ser um bom chef. As favas assadas inteiras no carvão, o broto de bambu servido cru em sashimis, os vários tipos de nabos cozidos somente no vapor derretem na boca. Como tempero, basta uma pitada de sal e nada mais.

    Não é preciso explicar que as verduras são orgânicas e o adubo também, que elas são completamente sazonais e colhidas à mão.

    Em Kyoto, um dos restaurantes mais festejados se chama "O segundo andar do verdureiro".

    Como diz o nome, ele fica realmente no segundo andar da loja Kametatsu, o verdureiro mais chique (e mais caro) do Japão.

    Seu menu, composto apenas de verduras da estação, não nos faz sentir falta de carne ou de peixe em nenhum momento. Todas as verduras, ali, tem muito sabor.

    PS: para os interessados em se tornar um vegetable sommelier vou avisando que o curso deve ser dificílimo, pois até agora o diploma máximo de senior meister só foi dado a sete pessoas.

    *

    Mostrei só o que há de mais simples na escrita ela. O que não quer dizer que seja fácil, na verdade é o que há de mais difícil. Mas, uma dificuldade que todos podemos alcançar com certo esforço de disciplina.

    nina horta

    É escritora e colunista de gastronomia da Folha há 25 anos. É formada em Educação pela USP e dona do Buffet Ginger há 26 anos.
    Escreve às quartas-feiras.

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