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    Nina Horta

    Não se deve falar mal da comida de alguém em sua própria terra

    17/08/2016 11h14

    Divulgação
    biscoito de polvilho mais vendido nas praias do Rio, o "Globo". (Foto: Divulgação) ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM*** *** FOTO EM ARTE E NÃO INDEXADA ***

    Eu queria falar mal do repórter gringo que escreveu uma crítica ao biscoito Globo, o mais querido das praias do Rio. O desenhista Saul Steinberg dizia que americanos tinham paladar infantil e que não iam aos restaurantes para comer, mas para se divertir vendo gente cantar perto das mesas ou esquiar no gelo, enquanto se entopem de manteiga de amendoim e de ketchup.

    Não são engraçadas essas nossas aversões e implicâncias? Infeliz esse repórter do "New York Times" que ousou falar mal do biscoito de polvilho. Ele não sabe que o biscoito Globo é tombado? Que é light? Que é um símbolo importante no banho de mar, de praia? Símbolo, presta atenção, símbolo.

    Repórter pouco estudioso. Pensa que só banana, menina, tem vitamina, banana engorda e faz crescer... Não, a comida alimenta também a nossa identidade, a nossa cultura, incorporamos o biscoito, ele faz parte do nosso corpo, branco, preto, gordo, magro, alto e baixo, esqueceu, diga-me o que comes dir-te-ei quem és?

    Entende, repórter desavisado, não interessa muito o gosto, você falando mal do biscoito de polvilho está falando mal de nós, nós somos o biscoito de polvilho, seu tonto. Tá vendo aquela celulite ali, a perna fina do vendedor de abacaxi, todos debaixo dessa pele rescendem ao polvilho, à cultura do polvilho. Da mandioca, lembra? Farinha, efes fricativos, farofa, frigideira, frita, frugal, fúlvida, fundamental, fundadora. O biscoito de polvilho é pós-moderno, pós-orgânico, dá esperança no futuro, não enche a barriga como as doughnuts açucaradas. Está com fome na praia? Biscoito de polvilho, emagrecimento sustentável, em francês é grignoter, em inglês to graze, em português beliscar.

    Sabe aquela horinha que bate a fome, que tem que disfarçar, enganar o estômago, e ele faz barulho, e se derrete na boca, talvez não seja saudável como como um bowl de endívia amarga, mas cadê o pensamento mágico, senhor repórter. São viciantes, assuntam bocas desassuntadas.

    Qual o motivo dessa atração? Desconfio que para as mulheres têm o gosto do permitido, o que é aquilo afinal senão o ar preso numa casquinha barulhenta? É dócil sem ser bobo. Faz crac crac, suja a mesa, o colo, você come sem saber que está comendo, é o ar com um leve gosto dos antepassados índios.

    Gente, esqueçam tudo, impeachment, Lava Jato, Olimpíadas, que um valor mais alto se alevanta. Jornal Nacional, programas especiais, esse gringo tá de bobeira conosco.

    Coisa que não tem e nunca teve controvérsia é falar mal da comida de alguém na sua própria terra. Bingo! Gente que estava dormindo na rede acorda para defender o sarapatel. Mistérios de identidade. O que se diria então do biscoito Globo? Um desajustado, esse repórter. É como falar mal de um anjo, comida mais leve e sem maldade como o biscoitinho de polvilho. "Depois de visitar a fábrica e experimentar o produto, David Segal afirmou que se trata de um alimento "sem gosto, símbolo perfeito do Rio" - uma cidade em que o cenário de restaurantes é "meh". Nossa, no meio das Olimpíadas o cara resolve esquecer do rapaz que emplacou a medalha de prata depois de três investidas. Como bem diz ele, da primeira caí de bunda, da segunda de cara e dessa vez caí em pé. E chora.

    O jornalista nem se liga, veio para falar mal do biscoito de polvilho, do doce e do salgadinho.

    Oi, repórter bobo com essas críticas bobas, de costumes. Em Roma faça como os romanos, e no Rio, principalmente na praia, entupa-se de biscoito Globo. Ô, sem noção! Meh!

    nina horta

    É escritora e colunista de gastronomia da Folha há 25 anos. É formada em Educação pela USP e dona do Buffet Ginger há 26 anos.
    Escreve às quartas-feiras.

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