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    Nina Horta

    A menina do licuri sente falta do sertão

    31/08/2016 02h00

    Juca Varella/Folhapress
    SOBRADINHO, BA, BRASIL, 24.08.2011: - (((EXCLUSIVO - ESPECIAL DOMINGO))) -: O agricultor aposentado Marcelino Pereira da Silva, 60, e seu filho Leandro, 10, entre os barrancos onde termina o leito seco da Adutora Serra da Batateira, em Sobradinho, ao norte do estado da Bahia. As escavas da adutora foram interrompidas no stio onde moram. - O municpio de Sobradinho dono de um recorde: dois ex-prefeitos tm que devolver R$ 64,9 milhes aos cofres pblicos, o que d cerca de R$ 2.950 por habitante de Sobradinho. a maior cobrana j feita pela CGU a um municpio. O problema se deu num convnio firmado em 1995 para a construo de uma adutora que resolveria a questo do acesso gua na cidade. Houve pagamentos por servios inexistentes, superfaturamento e toda a sorte de irregularidades. A responsvel pela obra era a Gautama, e est paralisada desde 2001. J so dez anos de obra inconclusa. Em 2009, a CGU disse que j crescia mato no leito escavado. - (Foto: Juca Varella/Folhapress, PODER ESPECIAL).

    A moça chegou do sertão há pouco tempo, é bonita, pernas fortes, peitão, Venus Calipigia (dá para disfarçar tudo, menos o bundão, e chama os homens de safados porque bolem com ela). Parece sempre um pouco cansada, pudera, duas horas de ônibus para vir e duas para voltar. E ainda tem um morro pra subir na volta, o ônibus nem consegue, tem que ser uma van.

    Só se animou um pouco quando lhe pedi que enfiasse a linha na agulha para mim, que não enxergava o fundo e queria cerzir a calça de lã.
    Ela se iluminou como se uma fresta de seu mundo aparecesse, de repente.

    Cerzir? A senhora sabe cerzir? Minha avó me ensinou, a gente cerzia tanto as roupas que ficava só um cerzidão, deixa que eu faço pra você, muié!
    Ficamos as duas sentadas lado a lado, a janela do quarto aberta, o céu ainda azul, mas quase que de repente esfriou um pouco, um crepúsculo súbito e ela se levantou da cadeira, como que assustada, atrasada, uma sombra nos olhos "Ah, lá em casa agora era hora de separar os cabritos das mães, fazia isso todo dia pra eles não mamarem mais, coitados, judiação".

    Custou pra se arrancar daqueles cabritos, tinha viajado até eles, e riu, "Eu sempre fugi das coisas de casa para mexer lá fora, não gosto de serviço de casa. Sempre gostei mais de andar atrás de galinha, de ovo, de achar melancia, pegar fruta no pé".

    Sentia falta, a família veio toda pra São Paulo, tinha uma filha, queria estudar mais, só que na hora de estudar estava parindo a menina. Agora tinha um namorado, que trabalhava no mesmo pesqueiro que ela. Os homens vinham pescar no fim de semana, as mulheres iam pro salão, ela fazia as unhas delas, até que gostava, sabia fazer unha direitinho.

    E tinha a igreja, adorava cantar louvor, e conversava com Deus, conversava mesmo, nem sei se a senhora acredita, mas peço alguma coisa e ele me responde de um jeito ou de outro. Gosto de louvor gritado, cantado bem alto, é assim que sai a coisa ruim da gente, a tristeza. Acho que vou casar, na igreja não pode viver em pecado, se quiser ficar com meu namorado tenho que casar.

    E você gosta dele?

    É... não bebe, já é alguma coisa.

    Era esperta, sabia ir no YouTube e escutar um louvor na hora que quisesse, mas o resto do mundo em São Paulo a confundia. Vinha da casa varrida à exaustão, dentro, fora, chão de terra, as redes, os tamboretes, o baú, e aqui era como uma feira, turbilhonante, as ruas formigando, o dentro das casas muito quieto, mas recheado de peças de um grande, de um enorme jogo que não fazia sentido, coisa demais, um destempero, uma loucura, nunca aprenderia aquele abecedário desvairado.

    E a comida na casa da mãe, que se fazia gostosa de tanto se repetir, o arroz, o feijão, a farinha, bode muito pouco que era para vender, o ovo e nem sempre ovo, e aqui essa desordem, só de tampa de panela e de caixinha de plástico nem dava para contar. E a cama tão complicada, um pano por baixo, um pano por cima, mais um para esquentar, outro pra boniteza, meu Deus, o que há de mal em uma rede?

    Nem tudo era bom, achava que tinha aceitado vir pra cidade de tanto mexer com licuri, tinha até pesadelo com o coquinho, que era óleo, era casca, era chapéu, relava os dedos, punha de molho, não punha, quilos e quilos de coco pra descascar, tinha bons, tinha ruins, às vezes rançava, fazia colares com o rançoso, nunca pegou um jeito de saber lidar com licuri do começo ao fim, ou socava no pilão, ou arrumava as folhas pras outras trabalharem. Raio de coquinho trabalhoso.

    Queria ler, queria escrever, queria entender, quem sabe um dia, levava jeito, acabou de cerzir com perfeição, ainda ia ter uma máquina de costura e desceu a escada pra pegar seu celular, o celular que só ele já era uma vida, uma alegria, um teatro, uma benção.

    Essa menina estava confusa, não tinha receitas, mas podemos pedir aos leitores que contribuam e se lembrem das coisas pobres ou muito ricas que já comeram no sertão.

    nina horta

    É escritora e colunista de gastronomia da Folha há 25 anos. É formada em Educação pela USP e dona do Buffet Ginger há 26 anos.
    Escreve às quartas-feiras.

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