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    Nina Horta

    As receitas que unem Jerusalém, cidade que olha para dentro

    07/09/2016 02h00

    Divulgação
    Salada com figos e laranja, do livro de Ottolengui
    Salada com figos e laranja, do livro "Comida de Verdade, de Ottolengui

    Era 2002, era o novo restaurante Ottolenghi. Vendia pão, salada, frutas, conservas, e tinha aquela cara informal que só se consegue no meio de verduras, legumes, e cheiro de bolos e tortas assando. Uma feira brasileira, onde os alicerces eram o alho e o limão e que se baseava na comida de rua de Israel e Palestina, no prazer dos dois sócios na sua infância, comida de verdade, pouco manipulada, cada gosto gritando para ser provado. De onde vem a comida?

    Faz bem aos rins? Quantos quilômetros percorreu de carro? Eles não queriam saber dessas chaturas, já obedeciam essas regras básicas, ali o negócio era divertimento e prazer.

    Os clientes pediram e eles escreveram o primeiro livro com as receitas da casa. São vegetarianos? Mais ou menos. Se dá vontade de comer um cordeirinho assado eles fazem, comem, vendem, dão um jeito.

    Yotam Ottolenghi, o guloso, segundo o pai, um menino judeu de Jerusalém, nu no quintal comendo uma romã que se espatifava em vermelhos pelo seu queixo e descia peito abaixo.

    Neto de toscanos que haviam fugido para Jerusalém e inventado uma pequena Toscana em casa, nonno e nonna gulosos também.

    Sami Tamimi, o outro sócio, é palestino nascido na velha cidade de Jerusalém. Enquanto Ottolenghi fazia filosofia e literatura e comia, Sami já se empregava em restaurantes, já tinha entendido que cozinhar era seu divertimento e missão.

    Os dois nasceram em Jerusalém em 1968, um do lado árabe e o outro do lado judeu, separados por uma guerra. Foram se encontrar em Londres e aí não conseguiram mais parar de cozinhar e conversar. Salada de ervas, muita berinjela, iogurte, abóbora, presunto bom, couve-flor, cogumelos, batatas assadas, batata-doce, sardinhas recheadas com passas e pistache e mascarpone doce, e figos sumarentos. Forno, açúcar.

    Duvidam que foi um sucesso? Quanto mais se ouvia o barulho de feira, mais gente chegava perto para conversar sobre comida, comer, trocar ideias.

    Em 2006, Ottolenghi foi convidado para ter uma coluna semanal no "Guardian" e, junto com Sami, escrevia o Plenty, um livro também vegetariano, em que dava receitas de costela de cordeiro, sem nenhum pudor. Tudo lá depende do bom ingrediente. Fiz uma receita deles para um casamento, receita que adoro, pedaços de abóbora com casca, cobertos de especiarias ao forno. Um dia pode sair a maior delícia e no outro, se a abóbora estiver sem gosto e aguada, nada feito, é o ingrediente bom que faz comida boa, uma berinjela queimada com tahine, uma saladinha de pepino com papoulas.

    O nosso brilho e tarefa será substituir os ingredientes que não temos pelos nossos. Vamos de Bela, ela usa muitos desses ingredientes de todo dia, esses que estranhamos porque o supermercado se esquece deles.

    Aqui em São Paulo não temos muitas desculpas, tem gente, tem cozinheiro de todo lado, do sertão à beira-mar, para nos ensinar a lidar com o siri e o dente-de-leão, a história é usar o inhame com camarão e a melancia com queijo de cabra. Melancia quente, churrasco de melancia, por que não?

    E um dia deu vontade neles (nos dois sócios) de revisitar a comida de Jerusalém, mas o que é a comida de Jerusalém? O avesso de um tapete bordado, impossível contar as culturas misturadas ali. Não, retrucam os dois, tem algumas coisas que todo mundo come: pepino, tomate, arroz, legumes recheados, picles, berinjela, semolina, carne com frutas secas, quiabo, minha gente, acreditem, quiabo criativo! E a fartura das mães.

    As pessoas não se entendem, só quando se trata de comida. Se Jerusalém não se entende agora, pode ser que o hommus os junte, resmunga Ottolenghi. E fizeram um livro clássico, sem frescuras novas, só umas mudancinhas aqui e ali.

    Uma coisa que me deixou feliz (porque sempre tenho uma preguiça atroz de ficar procurando a origem da salsinha), é que eles não ficam procurando origens. Quem inventou isso, quem inventou aquilo? Ah, que importa? Podemos procurar porque a resposta não vem, mas descobrimos um pouco de tudo no caminho. Jerusalém, o centro do universo. Uma cidade que olha para dentro, onde as pessoas passam e deixam o seu espírito passeando nas alas entre as oliveiras. Uma cozinha fanática! Que pena, chora Ottolenghi, mas das melhores.

    E agora a Companhia das Letras publicou um deles Comida de Verdade, que é o "Plenty More", e podemos navegar nos legumes sem culpa. Jogue-se nas receitas, da beterraba crua ao gergelim preto, o grão-de-bico amassado, tem gente que faz a moda de uma década, para mim quem organizou com mais inteligência e com livros bonitos essa década foram esses dois homens fora da caixinha, meio loucos, meio sérios, inteligentes e sem muros separando as diferenças, trabalhando com comida, mas no fundo fazendo a paz entre as mãe e avós e crianças inocentes e desequilibrando a guerra entre os pais, mais interessados no tahine do que brigar por limões através da cerca de arame farpado. Vejam receitas, usei e abusei.

    nina horta

    É escritora e colunista de gastronomia da Folha há 25 anos. É formada em Educação pela USP e dona do Buffet Ginger há 26 anos.
    Escreve às quartas-feiras.

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