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    Nina Horta

    O judeu e o palestino que juntam na mesa o mundo inteiro

    14/09/2016 02h00

    Reprodução
    Throwing Vegetables at Yotam Ottolenghi & Sami Tamimi [Tasting Table] Foto: reproducao para coluna Nina Horta ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***
    Os cozinheiros Yotam Ottolenghi e Sami Tamimi

    Ainda estou envolvida com as comidas de Ottolenghi e seu sócio, um judeu e um palestino, os dois criados em Jerusalém, cada um de um lado da cidade. Foi tão fácil e promissor o encontro deles! Sem pedradas nem bombas.

    Por acaso achei uma tese escrita por uma jornalista judia (ashkenazi) que foi muito criticada por se atrever a escrever sobre a comida árabe-palestina, pois os palestinos se irritam quando escrevem sobre eles, cansados de serem vítimas de investigação científica, por serem observados pelo lado de fora, quando na verdade moram junto com os judeus. Geralmente os livros tratam da comida palestina dos que moram em Israel como uma coisa diferente e exótica, como se estivessem falando sobre esquimós, e os palestinos detestam isso. Um mundo tão próximo geograficamente, às vezes com dez minutos de distância para se encontrar, e ao mesmo tempo tão longe, distância fabricada por preconceitos, por brigas mal resolvidas.

    A jornalista custou a perceber o porquê de toda aquela irritação com sua tese sobre comida, uma coisa tão leve e fluida e inocente. Na verdade, para os palestinos era um assunto nada frívolo, intocado pelos judeus, assunto sobre o qual os palestinos tinham controle total.

    Ao continuar a estudar, a jornalista percebeu que os assuntos sociais, políticos, financeiros e de gêneros eram facilmente revelados pela comida e seus usos. Que revelavam relações sociais, tradição, orgulho e resistência. Ela não passava de uma intrusa num grupo palestino que ao mesmo tempo que queria pertencer ao todo, junto com Israel, queria manter sua identidade e suas tradições. Foi só então que ela se deu conta de como eram limitados os contatos entre judeus e palestinos em Israel.

    Ela via que judeus e palestinos se aceitavam como pessoas, como indivíduos, e até podiam se tornar amigos, mas os palestinos nunca foram aceitos como grupos, inseridos na mesma sociedade israelense.

    E o nosso assunto aqui na Folha tem sido o de escrever sobre comida, muitas vezes disfarçado sobre outro assunto, como os biscoitos Globo, a ojeriza que alguns podem ter por ele, e a reação mortal dos cariocas quando se fala mal de uma coisa que é muito deles.

    E era difícil escrever sobre comida, por esses e muitos outros motivos. Ottolenghi foi convidado a ter uma coluna no Guardian...mas sobre comida vegetariana... e nem vegetariano ele era!

    "Os livros de cozinha são espaços sociais com suas próprias regras. Juntam receitas, avaliam, comparam, dizem como se faz. Dessa forma o segredo de um grupo está sendo desvendado por outro."

    Os livros de cozinha chamam memórias, significam coisas diferentes para grupos diferentes. Os livros de cozinha escritos pelas minorias querem mostrar o que eles comem, o que seus pais comeram, a mesa, o jeito, o desfilar das comidas, a importância maior ou menor dos ingredientes. Essa generosidade brota da globalização, e é atualmente um processo que borra as diferenças de cultura que convivem no mesmo território, que aceita comida do mundo todo, como pizza, cachorro-quente, tacos e churros.

    O que aconteceu com a Palestina foi diferente, os cidadãos palestinos de Israel não mudaram as raízes de sua comida, comportaram-se como imigrantes que nunca saíram do lugar e além de manter as tradições aceitaram tudo que era novo em matéria de tecnologia e que facilitasse a vida das mulheres palestinas. E algumas das comidas foram incorporadas no menu de Israel, como o falafel, hummus, tahini, baklava e e labaneh.

    "Escrever um livro de cozinha é complicado porque cada mulher tem seu jeito de cozinhar. Se eu escrever um, vai ser do meu jeito, e quem vai obedecer minhas ordens? A minha comida é que vai mandar nas outras? Como eu conseguiria apresentar um quadro inteiro da sociedade palestina?"

    Nawal, uma palestina, diz que toda mulher, toda casa, toda região da Palestina tem um conhecimento variado e complexo de sua cozinha e seria quase impossível apresentar um livro de comida autêntica. Daria briga, com certeza. Antes de fazer o livro seria preciso chegar a um acordo sobre os pontos principais, como ensiná-los e quem seria a pessoa autorizada a espalhar esse conhecimento. Esse é um problema só para os palestinos de Israel, afastados da sociedade israelita. Querem mostrar uma cozinha rica e organizada e têm medo que ao invés de apresentar um manual coeso de receitas apresentem uma confusão nada objetiva dos ensinamentos de cada mãe, e mostrando ao pessoal de Israel que são confusos e sem uma
    tradição real e confiável. Sem exatidão.

    Isso que escrevi é apenas um parágrafo de um mundo, de um enorme espaço, de centenas de problemas, da conturbada relação entre árabes e judeus que moram na mesma cidade e se estranham constantemente. Ottolenghi e o sócio passaram por cima desses preconceitos e conseguiram juntar com técnica, alegria de cozinhar, as sua comidas de infância que poderiam ter sido usadas para aumentar preconceitos e que no entanto juntam na mesa, generosamente, o mundo inteiro.

    nina horta

    É escritora e colunista de gastronomia da Folha há 25 anos. É formada em Educação pela USP e dona do Buffet Ginger há 26 anos.
    Escreve às quartas-feiras.

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