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    Nina Horta

    A sedução das cumbucas e pratos fundos deve ser pesquisada

    28/09/2016 02h00

    Raquel Cunha - 21.out.2010/Folhapress
    SAO PAULO - SP, BRASIL - 21.10.2015 - Detalhes da casa da colunista da Folha e empresaria Nina Horta em sua casa em Sao Paulo. Horta lanca este mes o livro "O frango ensopado da minha mãe" pela Companhia das Letras. (Foto: Raquel Cunha/Folhapress, ILUSTRADA) ***EXCLUSIVO***
    Coleção de louças de Nina Horta

    Por mim só falaria sobre galinha e louça. São assuntos que me fascinam e me repito neles. As mulheres já não querem se identificar através de seus tricôs, crochês, cozinha, roupa lavada no tanque. Passar roupa, então, não existe mais esse afazer, que ponham as roupas amassadas ou que cada um passe a sua. Claro que segui a onda, fui trabalhar fora e deixei a família penando com os afazeres, cri-cri.

    Ah, mas tem coisas que a gente não esquece! Fiquei sufocada com meu gene de colecionadora, o que há de mais gostoso do que colecionar louça? E por quê? Não sei, acho bonito e acho que precisa ser meu. Frequentei o e-Bay por uns tempos, antes que se modernizasse, e quase fui à falência. Como aquele pires com o desenho do Oliver Twist pedindo mais sopa? Tinha que ser meu. Quase tudo lá era vendido por leilão, de libra em libra a emoção subia e um belo dia chegava na sua porta o tal prato acolhido como um filho desgarrado.

    Vamos lá ao eBay, refrescar a memória. Virou um grande shopping, perdeu bastante a graça de garimpar, de escrever para a velhinha inglesa perguntando sobre um bule rachado. Pronto, apertei China, pulo a China inteira, com seus chineses, e chego nas xícaras. Pois não é que estão muito baratas? E essa aqui é linda, delicadíssima, pintada em cores de azul muito claro, e com o formato de uma flor, as bordas ondeadas, entendem?

    Trezentos reais por uma xícara só, absurdo. E essas vintage, com dourado, ai. De algumas posso gostar, outras não. Aperto o botão para mudar, e o que é isso? Minhas xícaras ocupam só metade da página. Na outra metade, o que é isso, batom, furadeira? Não, são dildos, são vibradores, são sex toys. Realmente as mulheres estão com tudo, há vibradores vocais, não faço ideia do que seja, com certeza obedece a voz do dono. Não quero olhar muito, minha veia de colecionadora pode aflorar. Outros são como o whisky da batedeira, alguns já descobriram o ponto G. Tem de tudo, batons, mini impermeável vibrador G, alguns têm nome como Jack Rabbit, as velocidades são muitas, a maioria é cor de rosa e muito feia.

    Gostei, adorei os de health care, que cuidam da saúde, fortificam os músculos, evitam incontinência e doenças de próstata. Alguns são descritos como "very cute" e cabem na carteira. O "pênis realístico com vibrador pau copo de sucção", deve ser tradução do Google, o Google deve ter pirado nessas alturas. Vou providenciar esse saudável, um bom método de tratamento preventivo, mas minhas xícaras estão ao lado, sem cerimônia nenhuma.

    Acho que o feminismo clássico não tinha essas brincadeiras, voltemos às louças. Gosto muito das branquinhas só com alça colorida. Não precisa ser só xícara, aliás gosto mais de cumbuca, aquelas de café au lait, francesas, equivalentes à nossas tigelas do interior.

    Há sempre que ter mais uma. Heidi tomava café da manhã com seu avô nessas cumbucas. Quer maior motivo para a cobiça? E o pior é que não tomamos café com leite aqui em casa. Mas servem para uma sopa de morangos, um caldo, servem para tudo. Acontece que só Freud pode explicar. Que nos mostrem uma compoteira, uma tigela, um prato fundo e pronto, estamos fisgadas. Se nos perguntarem qual o melhor lugar para comer feijoada, por exemplo, vamos dizer: prato fundo e colher. A sedução pelo côncavo, uma tese a ser pesquisada. Quando terá isso começado?

    Já viram a louça de Clarice Cliff? Para fazerem uma ideia, uma vez, em Londres, com minha filha, fomos visitar um museu e a sala dela estava fechada. Ao encarregado! O encarregado em Londres é sempre um inglês alto, fino, cabelos grisalhos, de terno e sorriso irônico que, ao saber das duas malucas vindas do Brasil, foi ele mesmo, de chave, abrir as portas.

    Nem todo mundo gosta de Clarice Cliff. Começou a fazer sucesso de verdade pintando para umas fábricas inglesas em 1921. Teve a ideia de revolucionar a louça fazendo as pinturas em art déco com cores alegres, alaranjadas, verdes, as flores escorrendo para fora dos bules. Ou pintadas só pela metade, ou qualquer coisa. Era uma artista de verdade. Tudo tão inusitado que suas coleções neste estilo chamavam-se "Bizarre", mas nunca deixaram de vender, e muito, apesar da bizarrice tanto da própria pintura como do formato dos objetos.

    Já cheguei à conclusão que, se acontecer um ataque do vírus das louças, pare. Compre um livro sobre o objeto amado. Aquilo vai se tornando um estudo, o período, as cores, o jeito de pintar, as comparações. Não vai ser preciso comprar nada, satisfazemos nossos impulsos primários e, sem sutiã, feministas femininas continuamos tomando "café au lait" nas canecas de sempre.

    nina horta

    É escritora e colunista de gastronomia da Folha há 25 anos. É formada em Educação pela USP e dona do Buffet Ginger há 26 anos.
    Escreve às quartas-feiras.

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