• Colunistas

    Monday, 06-May-2024 02:08:55 -03
    Nina Horta

    As comidas embrulhadas e recheadas

    05/10/2016 02h00

    Leo Feltran/Divulgação
    Pastel do chef Benny Novak para o bar Original - Leo Feltran/Divulgação

    Embrulhados e recheados: podemos começar sobre o olhar do dito civilizado sobre a comida dos aborígenes australianos.

    Espantaram-se ao ver um deles chegar carregando nas costas uns bichos e jogá-los sobre as cinzas quentes. Depois de um tempo, pegavam os animais pelas pernas e os viravam para soltar os pelos do outro lado. Com isso, ficava fácil arrancar as peles, enfiavam um instrumento afiado na barriga e retiravam com facilidade os órgãos que jogavam sobre a fogueira e logo retiravam comendo-os mal passados.

    Outro modo era enrolar os peixes em cones de folhas de melaleuca, de onde saiam cozidos em filés brancos, com todos os sucos e as peles separadas. Também muito espantou os ingleses ver um peru selvagem, depenado e limpo, ser recheado de pequenas batatas, algumas folhas que pareciam sálvia e sal, recoberto de argila e posto a cozinhar no fogo. Depois de algum tempo, o envólucro de barro era quebrado ao meio e de lá de dentro saia o peru com a cara mais apetitosa do que um de mesa de Natal civilizada. Os europeus achavam que os aborígenes não era civilizados, mas na verdade, apesar de não usarem panelas, estavam demonstrando muita eficiência ecológica e sofisticação culinária.

    Um dos palestrantes veio com toda a história do chicken Kiev, frango à Kiev, um peito recheado com manteiga e frito, aliás, delicioso, e enveredou pela história das galinhas, de como a carne se perdia antes da refrigeração, de como chegaram à galinha de gaiola. Dada a distância entre o produtor e o consumidor final, era necessário manter a galinha gelada por longos períodos de tempo. Isso vai requerer várias tecnologias, como refrigeração portátil, contêineres para transporte e vitrines para a exposição do produto, todos agindo ao mesmo tempo para manter a cadeia intacta e conhecimento científico para gerir o sistema, controlar bactérias e garantir que um produto como o frango à Kiev chegue ao consumidor muito bem
    embrulhado nessas técnicas novas, além de ser recheado com manteiga e salsa...

    A lasanha é embrulhada? Recheada? Sem comentários sobre a cozinha turca que adora rechear e embrulhar. Para um homem turco, vegetais enrolados e recheados significam simplesmente comida. Interessa a ele o gosto da comida. Para a mulher turca, todo aquele enrolar e rechear é um fenômeno sociológico do qual ela faz parte. Não é fácil. Saber fazer um charutinho bem miúdo pode levar a um casamento melhor ou pior ou a nenhum casamento. Noivas são devolvidas por não saberem enrolar recheios em folhas ou rechear abobrinhas e berinjelas. Esse assunto, acreditem, é cheio de delicadezas e só cabe num livro bem grosso.

    Chegaríamos então ao pastel de Tentúgal, um artefato da história culinária, um doce cheio de identidade, em formato de charuto crocante, recheado de amarelo doce. De onde veio? É turco, grego, marroquino, da Tunísia, de Viena, da Bulgária? Börek, baklava, spanakopita, bastilla, brik, strudel, banitsa? Não, é o pastel de Tentúgal. É um pouco diferente graças às freiras dos conventos de Tentúgal, uma outra história comprida. É feito com lençóis muito brancos esticados no chão para abrir a massa com as freiras pisando descalças sobre o linho branco, puxando a massa de metros e metros. Transparentes como nuvens. São diferentes dos feitos no palácio de Topkapi. As freiras aprenderam ouvindo histórias de momentos
    geográficos diferentes, dos palácio de Topkapi, ou revivem histórias mouras antigas, em Portugal? É serendipity ou sincretismo cultural?

    Pois, é meninos e meninas, assim discutem eles nos simpósios de Oxford. Teriam pulado o haggis escocês? Jamais. Um prato que consiste do coração, pulmões e fígado de um carneiro, ou bezerro, etc, ou algumas vezes da tripa e das gordurinhas, moídos com a gordura do rim e com aveia, temperado com sal, pimenta, cebola, etc e fervido como uma grande salsicha, no estômago do animal? Com diferenças regionais pronunciadas. Não, os escoceses não permitiriam jamais que esquecêssemos dessa joia culinária.

    Porcos, galinhas, vacas, salsichas e salsichões. Os bolinhos chineses, brancos, cozidos no vapor!

    Um knish, é um knish. A evolução de uma comida de rua para as mesas mais sofisticadas. As tortas, as empadinhas, o pierogi, o varenike, de onde eles vêm, dio mio? E burecas e baclavas, e os charutinhos de uva, de repolho, de couve, e os ingredientes comidos na mão dentro de um pão chato, de um pão folha? E o nosso pastel, ganha um tostão quem adivinhar de onde veio, só adianto que não foi da China nem do Japão. E como se chama ele quando na mesa já frito e recheado é aberto e re-recheado com arroz, feijão e salada?

    Uma das palestrantes sugere que todos os pratos, cuisines, são, com certeza, expressões culinárias, mas são mais diferentes nas suas etnias do que parecem. Ao lhes dar a identidade de nacionais, étnicos e puros estamos falseando a realidade. Somos vira-latas nesse mundo tão rico de receitas, podemos quebrar essas restrições e abraçar as complexidades. Somos todos vira-latas nesse mundo da comida.

    nina horta

    É escritora e colunista de gastronomia da Folha há 25 anos. É formada em Educação pela USP e dona do Buffet Ginger há 26 anos.
    Escreve às quartas-feiras.

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024