• Colunistas

    Monday, 06-May-2024 04:02:55 -03
    Nina Horta

    Enquanto não chegamos na cartilha pronta, vamos comendo azedinha

    26/10/2016 02h00

    ilana lichtenstein/Divulgação
    Sorvete de formiga, consomê de jabuticaba, iogurte e sagu de coco, do Tuju
    Sorvete de formiga, consomê de jabuticaba, iogurte e sagu de coco, do Tuju

    Imagino que no curso de uma vida haja naquele momento, naquela geração, um assunto predominante. Na minha geração a comida apareceu. Desde 1970 começamos a reclamar dos pratos grandes com pouca comida —que surgiram com a nouvelle cuisine. (São Paulo, gente ligada à comida, que vai a restaurantes, que escreve sobre o assunto). Há quarenta e seis anos falamos a mesma coisa nos livros, nos jornais, nos cadernos, na internet.

    Os pratos, belamente apresentados não saíram de moda e aprendemos a nunca mais amontoar comida neles, coisa difícil com arroz, feijão, bife, salada, couve-flor empanada e pastel, que é o que realmente comemos.

    Pois fui a um restaurante bem estrelado, chef revelação, essas coisas, lindo, com horta no telhado, na frente, atrás, debaixo da mesa, nas laterais. Jardins suspensos de salsa da Babilônia, sintonizado com a modernidade na arquitetura e na comida.

    Foi pegar o menu e ver o que François Revel chama de cozinha falante, palradora, com menus que conversam com você.

    Prestei atenção, transfiro aqui os substantivos do cardápio degustação: wagiu - feijão-manteiguinha - topinambo - germinado de milho - tucupi preto, caldo de moqueca - tubérculos - camarão branco selvagem - couve rábano - carpaccio - garoupa - leite de ovelha - taioba - tutano - castanha portuguesa - pão de castanha do Pará - buquê de PANCS - folha de peixinho - carne crua - bottarga - éclair de ouriço - pó de alga codiem - tapioca de foie - cambuci - sequilhos de carimã - conserva de bulbo de erva-doce - ovas de truta - ostra - cajuína - vinagrete de papaia verde - língua - beldroega - atemoia - limão - infusão de folhas de figo - crumble de café - calda de jabuticaba - pitaia - mirtilo- pinhão - sorvete de formiga.

    Pois bem. Para um comedor comum seria quase um menu de Marte.

    Curiosa, quis comparar com menus de vinte anos atrás.

    Tenham paciência, é interessante. Vamos aos substantivos.

    Massa folhada - tomate - cebola - presunto passado na máquina - parmesão - alface repolhuda- vinagre branco - maçãs - palmito - cenouras - galinha- frango - aspargos - leite - farinha de trigo - peixe grande - limão - salmão de lata - cominho - vitela - manteiga - cebolinha - salsa - batata - tournedos - gelatina - açúcar - nozes - ostras cruas - lagosta - geleia de mocotó - pêssegos - abacate - banana - coco - batata-roxa - sal - azeite - ovos - canela.

    Vemos claramente que mudaram os ingredientes. Totalmente. Como se numa gramática surgisse um novo alfabeto. E é claro, mudaram as regras, os diferentes métodos para lidar com as novidades. Aqui no Brasil, me desculpem os outros restaurantes aos quais não tenho ido, e falo do Maní e do D.O.M., aos quais fui por último. São eles, na minha conta, que têm tanto o alfabeto novo, como as regras de lidar com eles.

    Têm uma linguagem própria, aprenderam a juntar as letras do diferente, formam palavras e usam os métodos necessários para construir uma linguagem, a linguagem deles.

    Na maioria dos outros restaurantes, os chefs sabem todo o alfabeto, são donos dos ingredientes, sobem pela manhã em árvores procurando amoras, usam PANCS jamais vistas, mas ainda não transformaram tudo isso numa linguagem. Estão, como crianças, misturando as letras, experimentando os vocábulos, compondo pequenas frases. Alguns chefs já escrevem sinfonias, outros estão ainda lutando, batucando jingles e refrões.

    Não aprendemos ainda ou não temos pronta uma nova cartilha. Não só os comedores estão aprendendo a língua nova, como os chefs, e a grande maioria busca ainda sua linguagem e tenta formatar sua estrutura. Depois de descoberta a linguagem (e a linguagem de cada um tem suas diferenças feitas de pedaços de vida, de comida de avó, de mãe, viagens, de livros, de cinema), vão se formar grupos da mesma escola, do mesmo naipe, da vivência parecida.

    Nós, os que comemos, vamos gostar mais dessa ou daquela linguagem à qual o chef chegou, pois se parece com a nossa, podemos reconhecê-la sem muita estranheza. Enquanto não chegamos na cartilha já pronta, vamos comendo azedinha, priprioca, farinha ovinha, formiga, logo, logo já enlatada, painço, umbigo de bananeira, numa busca às vezes cansativa, mas prenhe de surpresas.

    A criatividade, a sofisticação de algumas dessas experiências é tão interessante que tentamos taxá-las como a vencedora, a única, a boa. É uma tendência de nosso senso comum achar que o bom é aquilo a que fomos acostumados. Aquilo que comemos com frequência. Mas não é.

    Cada chef está interpretando a comida dentro das experiências pelas quais passou na vida. Se forem semelhantes às nossas é da comida dele que vamos gostar.

    E cá estamos nós, carneirinho, carneirão, é de manjericão, sendo submetidos às experiências novas que vão ou não construir depois uma linguagem. Tomara que construam, as experiências custam caro.

    E a linguagem do Brasil profundo, aquele que não conhecemos, não provamos, vão desaparecendo empurrados pela civilização, pela cidade grande, pela influencia dos ricos países de outro mundo. A cada dia nos aproximamos de uma linguagem só e quase todas falam inglês, francês e espanhol.

    E assim caminham a gastronomia e a humanidade. Enquanto experimentam há ainda um pano de fundo "mãe, põe o feijão do lado do arroz. Mãe, posso encher o pastel de salada? Mãe, posso tirar a cebola de cima do bife? Quero ovo, mas com a clara bem queimadinha. Vagem, não, mãe, menos!".

    nina horta

    É escritora e colunista de gastronomia da Folha há 25 anos. É formada em Educação pela USP e dona do Buffet Ginger há 26 anos.
    Escreve às quartas-feiras.

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024