• Colunistas

    Monday, 06-May-2024 10:31:31 -03
    Nina Horta

    Da cozinha de Paraty só saíam coisas boas

    09/11/2016 15h30

    Otavio Nogueira/Flickr
    Região histórica de Paraty
    Região histórica de Paraty

    A mulher veio em direção à mesa de jantar, saindo da cozinha, rosto afogueado com uma enorme tigela de vidro nas mãos. Era o que todos estavam esperando e a ajudaram a forrar um pedaço da mesa com madeira para a tigela não suar e manchar a toalha. O olhar da família e dos convidados não era mais de tanta fome. Estavam com o estômago forrado pelas ostras com limão e uma pitada de pimenta.

    Todos tinham saído do banho, cabelos molhados, cheiro de sabonete Phebo, roupas decotadas ou largas, uma satisfação brincando nos olhos.

    Ah, aquela cozinha! De lá só saiam coisas boas, também com a paisagem lá fora, o passarinho comendo banana na janela, a pimenteira que entrava casa a dentro!

    Época de férias e era comovente ver, sentir o cheiro, ouvir, tocar na comida que saía daquele fogão pela mão da mulher.

    O prato do dia tinha sido inspiração da manhã quente, no mercadinho do píer. A maré estava excepcionalmente alta, a água subia até o joelho e ela se pôs a esperar na feirinha construída mais no alto, justamente por causa das enchentes.

    Nada de ingredientes de tirar o fôlego, queria só umas cebolinhas e coentro, coisas de lá mesmo, de Paraty. Comidas meio feias, orgânicas que não se sabiam orgânicas. Ovos de galinhas magras de tanto subir morro, batatas manchadas de terra, mexericas do Rio, pequeninas mas doces, muito doces. O que estaria faltando? Olhou para a sua inspiração do dia, tudo enfiado na sacola com gelo, tinha esperado o barco chegar e recolhera o que deu, um polvo pequeno, grandes camarões e lulas miúdas também.

    Não sabia direito como fazer, o que fazer. Um calorão e aquela extensão de água à sua frente, Paraty inundada, Veneza pobre, mas linda, acobreada, se mexendo por inteiro, entrando pelas ruelas, chegando até o fim da Igreja. Diziam que era o jeito de Deus limpar a igreja, mas ela não era boba de escutar história de comadre. Quando a maré ia embora todas as ajudantes do padre se punham de lenço na cabeça, arregaçavam as calças, e de rodo e vassoura na mão lutavam contra a areia e o barro.

    Adorava tirar a casca daqueles camarões, que sopa, que coisa mais fácil, agora as lulas já apresentavam um pequeno perigo pois podiam ficar duras se ela não cuidasse bem. Mas pequeninas assim eram as mais saborosas. Iria sabe o quê? Juntar aqueles bichos todos numa salada de frutos do mar que brilhasse como aquela manhã brilhante e molhada de Paraty.

    Em casa, o ritual de sempre. Os barulhos da mesa sendo posta, o tilintar do talher, cristal contra cristal das taças velhas, transparentes, límpidas. A toalha de pano rústico tecido a mão, um reles macramé nas beiradas. Todos os sentidos se embaralham sobre uma refeição, umazinha só. A orquestra de um ritual que se ouve em casa, no restaurante, barulhos que anunciam prelúdio da refeição e que se esforçam por torná-la memorável.
    Para isso é preciso que a comida esteja boa. Pode ser bonita, linda, isso ajuda, mas comida é feito fé, religião, moral, língua, tem que funcionar, valer a pena, amarrada como é ao nosso berço, nosso costume, não é preciso muita engenhosidade, só o gosto bom já bastaria.

    Nada de muito raciocínio, muita reflexão. Quem sabe para os chefs de restaurante tudo isso seja preciso, eles não fazem comida para um amigo, cozinham para o outro, o outro da sala que nem conhecem, então é a procura do perfeito por si mesmo, uma perfeição procurada e nunca atingida. São obrigados a criar um estilo que os traduza, precisam mostrar um pouco do desconhecido, do que deslumbra, encanta, para mexerem com os sentidos dos clientes. Cada ingrediente tem que ter seu peso e aparecer por inteiro, dando tudo de si, complexidades.

    Enquanto isso a comida da mulher é simples. Mas é boa. Cor de rosa, roxa, alaranjada, cor de água do mar de Paraty inundando as ruelas, o seu terroir, o seu terreiro. Pôs a vasilha na mesa como se fosse um tesouro sem feitio. E sorriu, encantada. Encantada, essa é a palavra.

    Arquivo Pessoal
    A cozinha da casa em Paraty, de Nina Horta
    A cozinha da casa em Paraty, de Nina Horta
    nina horta

    É escritora e colunista de gastronomia da Folha há 25 anos. É formada em Educação pela USP e dona do Buffet Ginger há 26 anos.
    Escreve às quartas-feiras.

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024