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    Nina Horta

    Quem come no McDonald's não tem nada a esconder

    14/12/2016 02h00

    Reuters
    Simbolo da rede McDonald's
    Simbolo da rede McDonald's

    Escrevi dois livros e esse texto foi cortado. O que vocês acham? Estou fazendo uma pesquisa em restaurantes de quilo, de bufê. Acho que é hora de ressuscitar essa crônica. Para discussão.

    *

    O que é, o que é, o mais adorado e detestado fast-food do mundo?

    Um cardápio limitado e padronizado que combina serviço rápido, limpeza e preço baixo. Pode ter mudado hábitos de comer fora, mas não põe em perigo hábitos de comer bem.

    A criança que mastiga o hambúrguer pode e possivelmente está escapando de uma almôndega pálida, cheia de pelotas de miolo de pão amanhecido, em molho de tomate de lata. Em casa.

    Não morro de amores pelo McDonald's porque não como hambúrgueres —nem dos ótimos. Mas não tenho medo dele. Foi lá que introduzimos nosso neto de quatro anos, que nascera num regime natural, na perversão americanizada. Levantou o copo com o canudo dentro e nos saudou com um tim-tim, como se fosse vinho ou champanhe.

    Foi lá que perguntou de supetão ao avô: "Você acredita em Papai Noel? Eu acredito". A neta, uma vez, chorou desabaladamente até chegar em casa e nos castigou por um tempo com sua ausência porque não deixamos que tirasse a cebola de dentro do sanduíche.

    Quem tem medo de fast-food? Este mesmo neto, hoje, percebe nuances no arroz do sushi, dá palpites em fondues. A neta faz bolos de chocolate, entende de ervas e de queijos.

    O McDonald's somos nós, a plebe, numa festa muito popular dos anos 1950, "come as you are". De bermuda, pijama, saia curta ou comprida, maiô, agasalho, tudo vale. Nada, nada em matéria de roupa ou sapato é estranho ao McDonald's.

    Muita criança, muito pai e muita mãe. Adolescentes espinhudos. Bastante gente gorda. Pretos, amarelos e brancos. Internos do hospital mais próximo de uniforme e estetoscópio. Empregados do supermercado ao lado. Namoradinhos apaixonados sobre a Coca-Cola. Adultos de celular. E velhinhas em penca. O único lugar do Brasil onde se permite a entrada de velhinhas. Curvadas, passo curto, encantadas com aquela última migalha de vida em que ainda podem participar, de convivência, de barulho, alegria. Babujam na comida sem que alguém repare, se enlevam com as caixinhas tão vistosas, comem com os modos que a velhice lhes permite.

    Quem come no McDonald's é um transparente. Não tem nada a esconder. Cada um é único, fortaleza íntegra diante do padronizado. Eu sou assim, minha família é assim, e daí?

    As crianças pequenas têm largo espaço para aprender a se comportar em público. Ficar na fila, pagar, conferir troco, deixar a mesa limpa, destampar caixinhas, abrir tubos, o que é feito considerável com a mostarda e o ketchup.

    Num restaurante estrelado receberiam um sem-fim de beliscões fininhos e disfarçados a qualquer deslize e ainda teriam que engolir o choro.

    Numa sexta-feira de preguiça, sentaram-se ao nosso lado cinco pessoas. Um casal moço, ele, mudo, ela tagarela a mais não poder, o filho bem pequeno e os avós. O avô abriu uma caixa de remédios e retirou a bula, que leu com profunda seriedade durante toda a refeição, mas quem me atraiu foi a avó. Era destas senhoras fortes, triangulares, muito ombro e bunda inexistente, com saia pelos joelhos, blusa curta por cima. Sentava-se puxando a saia com as duas mãos, como num tique nervoso, para que não lhe vissem os joelhos, as varizes ou suspeitassem de sua seriedade. De vez em quando passava a mão avermelhada pelos cabelos curtos e grisalhos.

    Quando o hambúrguer chegou ela puxou a saia mais uma vez, pegou o sanduíche e começou a comê-lo numa felicidade contida, com o coração cantando baixo. Atenta, muito atenta e feliz. Atrás daquele ritmo vagaroso de comer o pão, quase escondia o prazer daquele privilégio. Jantava fora.

    Com aquela inocente escapada evitara seis panelas sujas, o arroz grudado no fundo de uma, 12 pratos, talheres, as sobras enchendo os Tupperwares na geladeira apertada. Um fogão engordurado, a pia meio entupida, a água quente jogada no chão escorregadio, o rodo, o pano de chão, a indiferença distraída de todos. Este é um dos motivos pelo qual me agrada o McDonald's. O outro são as batatinhas fritas com ketchup.

    nina horta

    É escritora e colunista de gastronomia da Folha há 25 anos. É formada em Educação pela USP e dona do Buffet Ginger há 26 anos.
    Escreve às quartas-feiras.

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