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    Nina Horta

    Café tem perfil, acredite

    22/02/2017 02h00

    Divulgação
    Wolff café, de Pietro Santurbano
    Wolff café, de Pietro Santurbano

    Conheci o Pietro em 2010 no encontro de literatura em Santos, a Tarrafa, comandada pelo Luiz Tahan. Foi uma ótima reunião, teve autor famoso, hotel estrelado, muitos frutos do mar. Não se sabe ainda qual foi o maior brilho, o Veríssimo, o Zuenir Ventura, o Fiúza, o Mark Crick, o Zeca Baleiro, o Torero ou os enormes camarões. O Pietro Santurbano era um rapaz de vinte e poucos anos que queria ser escritor e descobri que escrevia bem mesmo, ontem no telefone conversou comigo numa linguagem meio cifrada falando em "terceira onda do café" com o lance de rastreabilidade (essas coisas, de onde vem, produtor, carbono zero, conceitos do Slow Food).

    No dia seguinte, chegou de mochila, calorão, bigodes, barba, com toda parafernália de um café novo, o melhor, o mais gostoso. Meu paladar não é lá essas coisas, o nariz funciona muito melhor, queria que o Luiz Horta estivesse aqui para falar de cheiro de chocolate amargo, frutas vermelhas, pêssegos ao luar, ou o Adiu Bastos, sommelier do Tuju, que invocaria de Baudelaire a outros franceses malditos. Na falta deles, havia somente eu, uma cozinheira de nariz afiado, o Pietro e o café especial, direto do pequeno produtor, só faltava fazer bem para a saúde, animar, como um tiramisù, "levanta-me".

    O café veio em grãos pequenos, sem ostentação e é moído na hora, pra não perder o sabor e metido a especial, sem blend, o grão. O Ur café torrado de acordo com seu perfil, café tem perfil, acredite. E o que é? De acordo com a sua torra, a temperatura inicial e final, o tempo de encerramento após o primeiro crack. Não que eu entenda dessas coisas, no caso, o crack é quando durante a torra, o grão começa a estalar.

    Consegui esconder a tempo o café solúvel da prateleira, que me salva quando o outro acaba e me traz doces lembranças de Londres, onde se tomava dele a três por dois. O que saiu da mochila do Pietro? Um moedor manual (a maior graça! queria ter um só pra mim). Uma aeropress, que é uma seringa da grossura de um copo. E creiam, uma pequena balança superprática para controlar o equilíbrio entre água e pó, fazendo-o mais caramelado, mais ácido, menos doce.

    Boa frescura, qualquer outro medidor também serviria.

    Enquanto esquentava a água, usava-se o moedor e continuava uma aula sobre grão fino, grão grosso, temperatura de água, café com mais corpo, cheiroso, da Fazenda Santa Jucy, fico imaginando a florada branquinha em Cássia dos Coqueiros, uma imagem de imigrantes italianos, Thiago Lacerda colhendo café, completamente distraída do ritual aqui na minha cozinha semelhante ao do chá.

    A água quente e o café já em pó, num minuto, foram postos na seringa sobre uma xícara e como numa grande injeção, o café foi filtrado. Provei com medo de errar. Sou covarde. Provei do mais fraco e do mais forte, sem açúcar, é claro, o primeiro equivaleria a um café coado e o segundo simulava um espresso. Só então percebi que os cafés não são amargos, eles são levemente cítricos e nem precisam queimar a boca, pois ao esfriar me mandavam recados como vinho.

    Não me venham atacar com jabá, mas de que me adiantaria tanta experimentação? Só pra vocês, o e-mail do Pietro é pietro@wolffcafe.com.br.

    Me rendi totalmente ao café especial, com um pouco de preguiça, mais uma coisa para estudar, pesquisar, gostar, ser foodie de café por uns tempos. Mas tem lá sua graça, imaginem nessa idade vetusta se apaixonar por alguma coisa que sempre esteve ao meu lado e eu desatenta.

    nina horta

    É escritora e colunista de gastronomia da Folha há 25 anos. É formada em Educação pela USP e dona do Buffet Ginger há 26 anos.
    Escreve às quartas-feiras.

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