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    Nina Horta

    Cozinheiros inventaram de nos dar as cinzas para serem comidas

    01/03/2017 21h45

    É dia de receber as cinzas, de escutar a voz do Espírito Santo nos chamando para a conversão. Sobre nossas cabeças a expectativa do jejum e os efeitos benéficos de evitar a carne sempre se traduziram em esplêndidos bacalhaus.

    O bacalhau era comprado pelo pai a caminho da rua Boa Vista, no Centro, Casa Godinho, e não era tratado com todo carinho pela mãe, que gostava dele rústico, lascas grossas e finas, tomate com casca e sementes, azeitonas verdes com caroço. Era assim, maltratado que ficava bom. De molho por uma noite, aferventava-se, retiravam-se as espinhas e a pele que era reservada. Para que não grudasse no fundo da panela, forravam-se o fundo e os lados da panela com fatias de pão fritas em azeite e com a pele para aproveitar o colágeno. (O melhor da bacalhoada pois absorve todos os sabores e fica entre crocante e molhado.)

    Daí é que, sem medir, de olho, ia-se enchendo uma panela de alumínio, fina, que dava fartamente para umas oito pessoas. Espalhavam-se em camadas, batatas inglesa cruas em fatias não muito finas, o bacalhau em lascas grossas, tomates em rodelas com casca e sementes, cebolas em rodelas, azeitonas verdes com caroço. Repetiam-se as camadas, sendo a última de batatas até encher a panela. Nada de pesos e medidas, o que coubesse naquela panela. Cada uma das camadas era recoberta fartamente de bom óleo de oliva, bastante mesmo. No fim do cozimento, se a cozinheira achasse excessivo, era só escorrer um pouco.

    A última camada era de batata. Tampava-se a panela, fogo médio, e o bacalhau estaria pronto quando a batata estivesse macia. Havia sempre um perigo de tragédia. De que o bacalhau soltasse água. Era um erro não admitido e, quando isso acontecia, rolavam suspeitas de que alguém abrira a panela muitas vezes ou que houvesse adicionado a água num engano. Mais tarde comi esse mesmo bacalhau na casa de uma portuguesa com certeza e a ela agradava aquela água, fazia questão dela e a espalhava por sobre o arroz. E um molho de pimenta ia bem.

    Sempre me impressionou a falta de medidas, só os bons ingredientes e fé em Deus.

    Hoje, é o dia das Cinzas. Só os muito religiosos observam o ritual das cinzas que depois dos alucinados dias de Carnaval são colocados na cabeça do fiel para que ele se lembre de que é pó e que ao pó há que tornar. Dias de reflexão, de comunhão com a natureza, de gozo dos pequenos prazeres de um dia, sempre a lembrar do pó, das cinzas, do dia derradeiro.

    Cinzas que eram feitas das folhas das palmeiras secas que haviam sobrado do ano que passou. Ou de qualquer palma. Mas a maioria delas na procissão de ramos é a palmeirinha de sagu, aquela de cheiro forte e almiscarado, cheiro de besouro amassado, como diz a mãe de Lizpaulo.

    Os cozinheiros querem sempre ser felizes. Querem inventar comida boa. Dançam até a quinta, mas inventaram de nos dar as cinzas para serem comidas. Cinzas, carvões, fumaça. Até já contei para vocês do Andoni, o dono do Mugaritz, frequentador assíduo do Brasil. Comprei seu livro, o último, para me inspirar, para contar aos leitores. Mas ele estava comendo comida queimada, comendo carvão, queimando vitela, espalhando pozinho preto por todo o lado.

    Divulgação
    O chef Andoni Luis Aduriz, do Mugaritz
    O chef Andoni Luis Aduriz, do Mugaritz

    Tudo bem para quem gosta de beirada de pizza queimada, da parte mais fina do rosbife, não estranha a moda.

    Em Londres, é fácil achar o carvão em pó para comidas como o queijo negro. No Japão, faz grande sucesso o hambúrguer preto. Esteticamente, pelo menos, é um luxo. Documentários de TV, em lugares nunca dantes navegados, usam o bambu para fazer cinzas e as cinzas entram na comida para melhorar o gosto. Não estamos mal na fita, aqui em São Paulo, no bairro da Liberdade há para comprar aperitivos gostosos, salgadinhos, amendoins com uma capa cinza de pó de bambu, de carvão de bambu. Não há quem não goste. As cinzas e o carvão são o novo negro e nada melhor para se comer na Quarta-feira de Cinzas para gente arrependida de tanta folia. Regozijem-se!

    PS: No Butão, segundo o NYT, sempre gostaram de seus legumes em wok levemente tostados. Então, cozinheiros, quando bisparem o arroz, deixem ainda mais um pouquinho enquanto procuram na internet de onde vem a palavra "bispar" e estarão na moda, ao seguir ritos ancestrais.

    nina horta

    É escritora e colunista de gastronomia da Folha há 25 anos. É formada em Educação pela USP e dona do Buffet Ginger há 26 anos.
    Escreve às quartas-feiras.

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