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    Nina Horta

    As coisas faziam de nós quem éramos

    15/03/2017 02h00

    Raquel Cunha - 21.out.2015/Folhapress
    SAO PAULO - SP, BRASIL - 21.10.2015 - Detalhes da casa da colunista da Folha e empresaria Nina Horta em sua casa em Sao Paulo. Horta lanca este mes o livro "O frango ensopado da minha mãe" pela Companhia das Letras. (Foto: Raquel Cunha/Folhapress, ILUSTRADA) ***EXCLUSIVO***
    Álbum de fotos de Nina Horta

    Cada um teve seus "bilongues". Lembram-se do baú da Emília? Eu me lembro do meu, com um floco de algodão cor-de-rosa, um azul, um folheto com a foto de um enorme colégio na Tijuca, onde minha mãe era diretora, e uma gaiola mínima, de brinquedo, com um passarinho dentro. Brincava, brincava fora de casa e corria de vez em quando para dentro, abria a caixa e dava uma olhada naquelas coisas que me levantavam por segundos na sua expressividade e beleza que eram minhas, inventadas por mim, prenhes de significados que nem a criança sabia interpretar.

    Outro dia, na casa de meu filho que se mudou há pouco, tive susto atrás de susto com as coisas da avó dele, minha mãe, que não via há séculos. Xícaras, pratos, mesinhas, toalhas, copos, coisas que pensava ter esquecido e que brotavam vivas, de repente, como uma camada de Troia, arqueologia de lembranças.

    Quando comecei no Facebook, me impus um álbum, que chamei de Dinge, Dinge, "coisas" em alemão, onde queria retratar o tanto acumulado numa casa burguesa dos anos 1960. Não dei conta da tarefa, mas deve estar lá, pelo menos a louça, cara de avó, de mãe, de tia, minha mesmo. E para culminar perdi todos os cartões-postais que jamais mandei de todas as viagens para os filhos, e com eles lá se foram minhas memórias junto. Assustei, não sabia que dependia deles para lembrar do passado, mas precisava.

    E as cozinhas e suas coisas tão importantes, dali saiam as comidas que faziam de nós quem éramos. Na fazenda de Ribeirão do Ouro, o córrego que passava no meio da cozinha tremeluzindo piabas e manchado de amarelo, com os patos que vinham comer os restos jogados nele. Esse me ensinou o que era beleza. Cada coisa que me veio de lá é guardada como se guarda um santo antigo na igreja nova.

    A bilha com a boca coberta com crochê, a roca de fiar, pouca coisa, que a fazenda era ascética, um pilãozinho de bronze, e logo pulo para o pilão de minha avó paterna, de pilar amêndoas para doces, e dessa avó saltam cálices coloridos, centros de mesa, um aparelho de jantar que craquelou inteiro, pratos pequenos como pires. Era a roça e a cidade, a pequena geladeira de zinco e o gelo entregue a brilhar sobre o muro num tempo que era só descoberta e encantamento. Comida de mãe, repetitiva e por isso boa, a mesa bem posta, a simplicidade sem afetação, o peixe, as verduras, o porco, o rosbife. Era a vida dos pais que se transmitia e que nos nutria, através das coisas compradas, das coisas vividas e aprendidas.

    A primeira Frigidaire, quase um ET, a máquina que lavava e secava, os móveis de pernas finas, as cozinhas da marca Fiel, pela primeira vez conjugadas.

    Coisas, coisas e mais coisas e o embate com ela, o raspar, o viver, o enxergar as coisas é que faziam de nós quem éramos, as conchas catadas na praia, o picolé, o prato de comida, o lustre de metal, o café com leite, o pão com manteiga, o susto de um pão com alho, a surpresa do sanduíche de chocolate iam formando nosso mundo. Quanto mais coisas, quanto mais quinas, a alcachofra tatuava, o feijão com arroz acostumava, o ovo frito lapidava, o frango assado comemorava.

    O excesso de coisas pode confundir a memória mas o que seria dela, paisagem desnuda, sem as coisas que a atravancam ou que a embelezam, ou ao que alimentam, ou que consolam, ou que fazem pensar? Num mundo sem coisas não teríamos lembranças. Como lembrar da infância praiana sem os siris, sem os tatuís se escondendo rápido nos buracos de areia? A memória e as coisas se entrelaçam, se abraçam, e o que seria de uma sem a outra?

    Vamos voltar a esse assunto importante. A comida é tão óbvia e cotidiana que esconde seus significados e estruturas complicadas debaixo de sua aparente inocência. Vamos dar uma estudada nos meandros da comida e da memória.

    nina horta

    É escritora e colunista de gastronomia da Folha há 25 anos. É formada em Educação pela USP e dona do Buffet Ginger há 26 anos.
    Escreve às quartas-feiras.

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