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    Nina Horta

    Como éramos nós antes da geladeira?

    22/03/2017 02h00

    Karime Xavier/Folhapress
    SANTO ANDRÉ / SÃO PAULO / BRASIL -01 /12/15 -18 :00h - Personal organizer dá dicas de como organizar a geladeira e gavetas. ( Foto: Karime Xavier / Folhapress) . ***EXCLUSIVO***ESPECIAIS

    Da última vez, falamos sobre o mundo das coisas. Para tirar de nós o arrependimento de guardá-las, cultuá-las, irmos à falência por causa delas... Ah, as coisas!

    Todos nós gostamos de pensar num mundo puro, próximo à natureza, sem consumo, paz de criança dormindo, longe das coleções predadoras.

    Um tempo onde não existe o paraíso das Bics que se perdem, dos Tupperwears sem tampas, das tampas sem Tupperwares debaixo da pia.

    Tempos de índio. Nunca se sabe se os índios são tão singelos porque não querem excessos, ou se não têm acesso àquelas coisas todas que juntamos. Índio não tem fogão, nem geladeira, nem panela de alumínio porque não quer ou porque não vai ao shopping? E batatinhas Pringles e Coca-Cola...

    Já repararam nos índios aculturados? Tênis, bermudas, celular, Google Maps, relógios, óculos, canetas, lanternas... queriam sim, só que não tinham onde comprar.

    Um antropólogo conhecido diz que quanto maior nossa apreciação de "coisas", mais profunda será nossa apreciação de gentes, de coisas de carne e osso. Conforta saber disso, não é, acumuladores?

    E há estudos. Apesar de ser uma filosofia da materialidade, há estudos. Como é que escolhemos nossas panelas, colheres, xícaras, pratos, copos, moedores de pimenta? Por sua funcionalidade?

    São engraçados os objetos. Se escondem, vestem a sandália da humildade, se fazem neutros, não brigam conosco, não implicam com nossa letra como as professoras de antanho, mas, sorrateiramente, constroem nossos hábitos.

    Para Marx, a humanidade começava com a natureza, o material nu e cru que usávamos ou que usamos para moldar nossas vidas. E a cada dia inventamos uma panela melhor, um liquidificador da hora, um processador que não dê problemas para fechar a tampa. Esse era o processo de nos civilizarmos. Fui dona da primeira batedeira brasileira que ao bater um bolo sujava até o teto. Logo depois conheci a Sunbeam americana que se comportava como uma deusa.

    Não crescemos socialmente através das poesias brilhantes, achados filosóficos, mas através da pedra que corta e se faz faca, do pote que segura a água e a comida, das plantas que aprendemos a plantar e a comer.

    Fazemos coisas que espicham nossos braços, imitam nossas mãos, substituem nossos pés e assim crescemos em sabedoria como em idade.

    Pensando bem, como éramos nós antes da geladeira, do fogão a gás, da luz no teto? Antes do rádio, da TV? Antes do MasterChef, da Paola, da Rita, da Nigella.... A geladeira, então, nos fez outros, concordam?

    E os livros que lemos, a influência dos escritores sobre nós.... Seria eu a mesma sem Elizabeth David, sem a Hazan? Não, claro que não. Ri com elas, imitei, obedeci, me admirei, fui aluna e amiga. Mas ainda não entendi direito essa filosofia da materialidade, do espírito e matéria serem um só, de minhas cumbucas terem me educado... Vou continuar a estudar, qualquer coisa aviso vocês.

    nina horta

    É escritora e colunista de gastronomia da Folha há 25 anos. É formada em Educação pela USP e dona do Buffet Ginger há 26 anos.
    Escreve às quartas-feiras.

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