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    Nina Horta

    Receitas são disfarces para se conhecer o outro

    26/04/2017 02h00

    Armando Franca - 20.dez.2011/Associated Press
    ORG XMIT: XAF101 A tourist leans against the railling of a balcony overlooking Lisbon's Alfama old neighborhood and the Tagus river at sunset Tuesday, Dec. 20 2011. (AP Photo/Armando Franca)
    Vista de Alfama, em Lisboa

    "Com avencas na Caatinga
    Alecrins no canavial
    Licores na moringa
    Um vinho tropical
    E a linda mulata
    Com rendas do Alentejo
    De quem numa bravata
    Arrebato um beijo
    Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal
    Ainda vai tornar-se um imenso Portugal" (Chico Buarque)

    Há quase sempre um pequeno Portugal dentro de um brasileiro. Que sejam rápidas memórias de turismo, uma ladeira na Alfama, uns miúdos brigando no quintal, a cidade e as serras, uma tabacaria, um fado, amêijoas na cataplana, uma bolsinha de prata rendada.

    Nunca me conformei com tanto mar nos separando. Um dia perguntei no Facebook onde poderia achar endereços de facefriends portugueses, afinal falamos a mesma língua, já era sem tempo de conversarmos e nos conhecermos melhor. Uma pergunta burra, com certeza, não existem endereços, é todo Portugal a seu dispor, você pede a amizade de um português, como se faz aqui e lá está ele seu amigo. Qualquer nome? Não, também não.

    Mas um dia, sem que nem me apercebesse muito bem, baixou uma portuguesa bonita no Rio de Janeiro, professora da escola do Bispo, em Lagos, fez uma exposição de um projeto seu, cativou um auditório e se fez amiga de um amigo meu, bem brasileiro, o Pablo Jorge, já conhecido por suas fotos e comidas maravilhosas. Encantado com ela, ele a visitou, aproveitou cada momento daquela súbita convivência portuguesa, comeu de todos os frutos do mar, cozinhou todos os bichos que lhe apareceram pela frente, gravou em imagens um Portugal que pouco conhecemos. (Se vocês quiserem ver, ponho nas conversas do Face, certo?)

    Receitas são disfarces para se conhecer bem o outro e sua terra e sua intimidade. A Lina Nascimento começou assim, disse que tinha lá na sua casa alguém que a ajudava e que viera da Moldávia. Onde seria a Moldávia, intriguei-me, com meus poucos conhecimentos geográficos. Mas a Lina foi me informando aos poucos do que lhe acontecia lá tão longe e me mandou uma receita de charutinho de repolho com um bilhete esclarecedor.

    "A Elena, minha empregada, veio para Portugal há cerca de dez anos, na altura do boom da imigração dos países de leste para cá. Veio casada à busca de uma vida melhor na cidade. Ela vivia no campo e não se identificava com aquela vida de tratar a terra e os animais. Adora Portugal, tem uma filha já nascida cá. Já se divorciou porque o marido tinha a intenção de ganhar aqui muito dinheiro poupando o máximo e regressar para a casa que lá têm. Ele já regressou mas ela ficou e já refez a sua vida sentimental, vive com um rapaz taxista e com a filha. Trabalha cá em casa há 6-7 anos. Trabalha também na casa da minha irmã e de uma prima minha. Espero que goste da receita dela. Beijinho"

    Coloquei a receita lá em baixo, parece ótima. Enquanto isso chegavam de vez em quando uns recados:

    "Acabaram de me vir trazer um cabrito inteiro. Socorro! Como vou desmanchá-lo? Socorro. Não como cabrito. Quando era pequena tinha um de estimação no campo da minha avó. Até que o mataram para comermos. Desde aí que não como essa carne. Vou dá-lo à minha família logo de manhã. Cá é tradição comer cabrito no domingo de Páscoa... E eu, ervilhas com ovos. Mãe!"

    "Amanhã vou fazer o cabrito para o almoço porque a Inês aceitou o convite para vir comer à minha casa com toda a família. Vc dá-me uma ideia de como cozinhá-lo?? As pernas são assadas para domingo. Para amanhã seriam as outras partes."

    "Feito o cabrito. Você queria fotos mas não as tenho. As pernas, fez a minha mãe assadas. Eu fiz as outras partes. Inventei, inventei. Temperei de véspera com uma pasta que fiz no almofariz com sal, alho, tomilho, pimenta-preta, sumo de laranja, malagueta e cúrcuma. Num tacho com azeite, pus cebolas em rodelas, o cabrito e este preparado e cozeu em lume brando três horas. Na última hora juntei dois courgettes. O pessoal adorou. Coisa inventada sempre sai bem."

    "Ervilhas com ovos, foi o que comi. Faço um refogado de azeite e cebola muito picadinha depois junto as ervilhas. Se forem congeladas, não junto água. Adiciono uma colher de chá de açúcar mascavado e sal. Cozem em lume brando. No final ponho um pé de hortelã e os ovos crus. Tapo o tacho e deixo cozer ou escalfar os ovos. Eu prefiro escalfados. Fácil e delicioso. Ainda tenho o que te contar. Começou a época da caracolada. Adoro. As ovas de lula é outro petisco delicioso. Este foi o jantar de ontem."

    *

    Aqui estão os charutinhos: sarmale.

    Receita
    Serve 4 pessoas

    1/2 kg de carne moída crua (porco e/ou vaca)
    2 chávenas de arroz cru e lavado
    1 couve repolho ou folhas de parreira
    5 dentes de alho picados
    2 cebolas picadas
    1 cenoura ralada
    2 tomates maduros e picados
    ½ pimento pequeno
    1 colher (café) rasa de pimenta
    1 colher de banha
    Toucinho picado
    sal

    Faz-se um refogado com a cebola e o alho na banha, até ficarem transparentes. Junta-se a cenoura, o tomate e o pimento e mexe-se um pouco. Depois mistura-se a carne e o arroz e tempera-se com sal, pimenta, e um pouco de toucinho. Misture bem. Reserve e deixe arrefecer.

    Coloque uma panela de água para ferver. Solte folhas do repolho (inteiras) uma a uma e coloque na água fervendo até elas amolecerem e ficarem maleáveis. Nalgumas zonas do país usam-se também folhas de parreira.

    Forra-se o fundo da panela com algumas folhas do repolho —as partes que se danificaram e as mais grossas.

    Constroem-se os embrulhinhos: abre-se a folha do repolho, coloca-se uma porção do preparado e enrola-se bem apertadinho, fechando as pontas quando possível. Deve-se fazê-los não muito grandes porque os mais pequenos são mais saborosos!

    De seguida colocam-se os embrulhinhos na panela, formando camadas. Quando terminar, junta-se um pouco de água a cozinha-se em fogo baixo.

    Pode-se servir com papas de milho rijas e regar com um pouco de natas. Curiosidade: Esta é uma receita de Inverno típica da Moldávia onde as temperaturas são negativas, não sendo viável o cultivo das couves. Quando a conservação dos alimentos era feita recorrendo ao sal, colocavam-se as couves inteiras em reservatórios de madeira com tampa, cobertas de sal. Na altura da utilização das folhas das couves, estas eram cuidadosamente retiradas pois, pelo efeito da salmoura, tinham a maleabilidade e o tempero adequados à confecção desta receita.

    *

    Pois, é, Lina do Nascimento, obrigada, assim de receita em receita vou formando um Portugal dentro de mim, e até um tanto da Moldávia. Essa internet não é de brincadeiras, não. Apresenta as pessoas, os países, já me sinto um tanto portuguesa e espero fazer-te brasileira num piscar de olhos.

    nina horta

    É escritora e colunista de gastronomia da Folha há 25 anos. É formada em Educação pela USP e dona do Buffet Ginger há 26 anos.
    Escreve às quartas-feiras.

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