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    Nina Horta

    Quem te terá planejado?

    03/05/2017 02h00

    Leo Caobelli - 22.fev.2008/Folhapress
    ORG XMIT: 395801_1.tif Gastronomia: Umibudo. Formada por delicados e pequenos bagos, conhecida como uva -do -mar. Na boca, as bolinhas "explodem" e provocam uma sensação parecida com a causada pelas ovas de peixe. De gosto suave, é usada em sashimis e para decorar pratos. (São Paulo, SP, 22.02.2008. Foto de Leo Caobelli/Folhapress)
    As uvas-do-mar

    Me apaixonei imediatamente sobre o mármore da pia da cozinha. Em volta de nós um grupo de gente interessada em cozinhar, comandados pela Mari Hirata que testava receitas. A Mari sempre me apronta dessas, me mostra o que eu jamais vira, krills mínimos, gafanhotos agridoces, mas eu não estava preparada para aquele mínimo cacho de uvas, mínimo mesmo, que vinha do mar do Japão, aliás, eu não sabia de que mar.

    Na hora, tive ciúme, queria só para mim, disfarcei, olhei com o canto do olho para a Neide Rigo, a mais perigosa nesse caso de comida diferente e estranha.

    Decididamente era caviar. Cheirei e era caviar do mar. Suspirei, emocionada, não resisto ao apelo do mar, ancestral, com suas marés em movimento. O meu caviar, que mudava de um verde translúcido para um mais escuro quando eu andava ao redor dele, estava prosaicamente amontoado numa caixinha de isopor branca, horrorosa, e dentro dela aquela coisa viva, ora até podia ser a primeira coisa viva que um dia saíra da água e tomara o caminho da terra.

    Essa Mari Hirata, já me alimentara do mais delicado wasabi, do ur-tofu e agora aquilo, no meio de outros ingredientes, e sem me avisar nada. Eu entendi sem perguntar, sabia de onde vinha a coisa amada, nu, trêmulo, translúcido, efêmero, miniesferas, um perfeito cacho de uvas verdes do tamanho do zero do meu computador. Quem o achara? Onde? Numa pequena lagoa perto da rocha? Não aguentaria ondas fortes, era limpo, sem areia, brilhava e cheirava a mar. Via-se sua fragilidade nascido naquele mundo bruto que é o mar. Delicado, vital, cristal.

    Quem te terá planejado nesse desenho perfeito?

    Quis perguntar à Mari, mas ela se abaixava no forno. Eu adivinhava uma alga, provei, estalou entre os dentes, e sabia a mar, era o mar, fresco e um pouco salgado, refrescante. Ploft, estourava, assim pequenino, tinha pele e suco por dentro. Ou água mesmo, água de mar.

    Ninguém parecia querer brigar comigo por causa de minha alga. Emi abria champanhe, Alberto fazia mais um purê, Neide esparramava suas Pancs numa mesa, mal sabia ela que a mais bela Panc do mundo era minha, escondida na caixa de isopor.

    Fui comendo aos poucos, é melhor não mentir. Estourei entre os dentes os pedacinhos de mar.

    Dentro de mim crescia a ansiedade, elas iriam morrer, quanto tempo durariam? Precisei perguntar, como quem não quer nada, se ficassem ali até o dia seguinte, o que aconteceria com meu caviar dos mares. Mari respondeu sem prestar muita atenção, de olho na sua torta de figos. "Aí, do jeito que estão, de três a cinco dias. Se você colocar na água e sal, de dois a três meses e secas duram uns três meses."

    Pensei rápido que as comeria todas para que não perdessem sua beleza, para que ninguém as comesse em sushi, nem em saladas com tomates. Eram o que havia de melhor no meio de todos aqueles preparativos complicados, nada daquilo me subia ao nariz como uma manhã no mar de Paraty. Secas poderiam alcançar altos preços nos mercados do Japão, mas se dependessem de mim não secariam nunca, nem ficariam saturadas de sal. Eu as comeria todas, naquele mármore gelado da cozinha e depois, com muito jeito, me informaria sobre elas.

    Mar é uma coisa muito especial, o calor, o frio, a sombra e a luz, o barulho das ondas, a salinidade. É fácil se apaixonar pelas coisas do mar. Tive que pegar informações. Tem o nome popular de uvas-do-mar, caviar do mar, lato. É uma alga, a Caulerpa lentillifera, muito apreciada em saladas, crua ou só com um pouquinho de limão e vinagre, misturada com cebola. Faz o maior sucesso em sushis, sobre o arroz. Claro, faz bem para a saúde, é nativa nas Filipinas e tem sido cultivada em muitos lugares e exportada com muito sucesso para o Japão.

    Mais uma vez, obrigada Mari Hirata, por me deixar provar o mundo.

    nina horta

    É escritora e colunista de gastronomia da Folha há 25 anos. É formada em Educação pela USP e dona do Buffet Ginger há 26 anos.
    Escreve às quartas-feiras.

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