• Colunistas

    Thursday, 02-May-2024 14:22:04 -03
    Nina Horta

    O ovo nunca fica obsoleto

    24/05/2017 02h00

    Isadora Brant - 12.fev.2011/Folhapress
    SÃO PAULO, SP, 12-02-2011: Gastronomia: ovo frito do restaurante 210 Diner, do chef Benny Novak, que tem uma seção inteira dedicada aos ovos, em São Paulo (SP). (Foto: Isadora Brant/Folhapress, 5157, ILUSTRADA)

    Custei a entrar no Facebook, não entendia direito o que se comunicava lá, se era um blog, ou um papo, para que servia. Se tinha vontade de contar aos outros quem era eu e saber deles quem eram. Não sei usar o computador, não sei fotografar...

    Mas entrei. Quase não pude acreditar naquele mundo fragmentado —quase só de imagens— e, no meu caso, imagens de comida. Embasbaquei... e me acostumei.

    A foto do ovo caipira que meu amigo vai comer. Está lá, esperando ser quebrado. O que é? Um pedaço pequeno de uma experiência de vida, uma realidade num tamanho menor, que você pode aumentar, se quiser. E não é arte que o amigo quer mostrar. É participação. Há pouco tempo meu amigo comeria o ovo e pronto, acabou-se o que era doce. Hoje não, lá está ele, imortal. O amigo gostou do ovo, achou interessante, achou que merecia ser fotografado. É só acionar uma máquina, seu telefone, com certeza. Não é um revólver, a máquina tem olhos amorosos, nostálgicos, quase sempre. O momento se congela, e se pode voltar a ele, quero ver meu ovo outra vez, já tomou café, já comeu o ovo, mas pode vê-lo ainda quantas vezes quiser.

    Gosto muito de coisa escrita, me confundo com imagens, mas será que se o amigo descrevesse o ovo eu o entenderia tão bem? Qual a melhor tradução do ovo? Três mil e seiscentos toques explicariam tão bem seu ovo caipira? Ou aquela foto simples, calma, de um ovo caipira, caipira, basta?

    Logo abaixo uma foto do ovo já frito. Desconfio que meu amigo não está triste. Ele se deu ao trabalho de pegar sua melhor frigideira, quebrar um ovo com cuidado e fotografá-lo para dividir sua experiência comigo e com os outros. Será esse um gesto narcísico? Acho que não, só confirmou a realidade, ele acha graça no mundo, quis replicá-lo, só isso.

    Fritar um ovo não traz consequências, não tem importância nenhuma? Tem sim, muito mais do que se pensa. Só porque meu amigo fotografou o ovo ele cobrou importância. Todo momento tem sua graça, todo bicho rasteiro sua nobreza. Fotografar um ovo caipira é redimi-lo de sua humildade marrom, caseira, pobre. Um ovo sem passado, sem futuro, simplesmente um ovo, com clara e gema, para sempre.

    Meu amigo poderia ter fotografado um ovo recheado de trufas? Poderia, por que não? Foi a Paris, o hotel era o melhor dos hotéis, mas não existiria diferença nas fotos. Um ovo é um ovo. Nas duas fotos o amigo põe respeito e reverência? Então são duas fotos iguais em importância.

    A beleza é inerente ao ovo ou nós temos que achá-la? Não sei, uma revolução poderia dar outra história e significado ao ovo? Revoluções mudam imagens, mas o ovo nunca fica obsoleto.

    Fico em dúvida frente ao Face, se meu amigo tivesse escolhido uma vagem seria tão linda quanto o ovo? Deveria ter assinado Clarice Lispector para dar maior importância ao ovo? Não sei. Só cliquei, curti, "liked".

    nina horta

    É escritora e colunista de gastronomia da Folha há 25 anos. É formada em Educação pela USP e dona do Buffet Ginger há 26 anos.
    Escreve às quartas-feiras.

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024