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    Nina Horta

    Mulher pra bater-papo debaixo do abacateiro

    31/05/2017 02h00

    Marcelo Justo/Folhapress
    SAO PAULO, SP, BRASIL, 03-11-2008, 11h00: Abacateiro na rua Antonio Gebara, na regiao proximo ao aeroporto de Congonhas. A reportagem de IMOVEIS vai falar sobre arvores no espaco publico. (Foto: Marcelo Justo/Folha Imagem, SUPLEMENTOS)

    Dez anos que não vou ao sítio. Há que fazer uma lista para não me esquecer de nada.Telefonar para a caseira, ver se ela não engatou uma viagem para Aparecida. Tenho saudade dela. Como estarão as coisas? As pedras irregulares das ruas continuarão dificultando o flanar distraído, súbitas visões da sala de visita de alguém? Com certeza. O barco foi vendido, não me lembro para onde, acho que um lugar que não tem mar. Ora, era feliz e não sabia.

    Onde se vende o melhor peixe, qual o murinho para se sentar e olhar a lua? Ainda existirá a árvore de fruta-pão, tão linda na Santa Casa? E a mãe do Thomas Mann ainda corre em meio às bananeiras quando alguém lê A Montanha Mágica? E o cavalo branco de D. Pedro continua em frente à casa dele nas noites de lua?

    É preciso levar lanternas, não se pode chegar à noite sem lanterna. Se você ilumina a estrada, vê as corujas de olhar fixo em você, aduncas, prontas, sérias.

    Os morcegos terão dado um tempo? Morcego adora aquela cidade, voam baixo, dependuram-se em telhas, não são turistas, sentem-se em casa, assim como as pererecas.

    Um rádio, um rádio, ainda se usa rádio? Qualquer coisa para evitar o coaxar ininterrupto dos sapos noite adentro.

    Pena que não é época de ciranda, aqueles homens soturnos, vaselina no cabelo, tocando as músicas de sempre antes de entrar em casa e dançar, dançar muito. Um dia encontrei minha mãe escondida embaixo de uma arara de roupas, de bambu, exausta de ser par. Só se vão embora ao raiar do dia e que ninguém lhes ofereça milho-verde cozido, que consideram comida de porco. Preferem linguiça, o próprio porco. Rodando, rodando, girando, girando.

    Antigamente, o caseiro sabia onde encontrar o melhor peixe ou se podia comprar no mar mesmo e embrulhar na canga. Hoje parece que vai tudo para as pousadas e hotéis, há que se descobrir telefones e pedir a lula que vão encher a pia "con su tinta" escura enquanto os borrachudos comem nossas pernas.

    Sei que a pimenta-do-reino morreu, acho que de velhice, dava demais, com aqueles cachos verdes, que logo se transformavam em negros, cara de pimenta-do-reino, mesmo, como conhecemos. Espero que a vermelhinha que sobe até a janela da cozinha, ardida, continue lá.

    Vamos comer de novo o de todo dia que é couve, salsinha, feijão de lá mesmo, farofa da casa de farinha. Tem galinha correndo no terraço. De fruta mesmo, quase nada. Ah, já ia me esquecendo das mexericas do Rio, que transformam qualquer café da manhã em banquete.

    Muitos ovos, "ovi", como declinava o seu Estevão.

    O cheiro que envolve tudo é o do manjericão, tem o jambo-branco que só enfeita, na florada, e fruta-pão também que a Sandra sabe fazer como ninguém. Goiaba e pitanga.

    Teve um tempo que o computador funcionava que era uma beleza, mas não sei se vou aguentar sem internet, fico meio melancólica dentro de um excesso de verde, prefiro o mar, cem vezes o mar. Acho que me desacostumei dessa vida plácida de campo, vou falar como uma professora de inglês muito atarefada que eu tinha: "Lá eu sou mulher pra bater papo debaixo do abacateiro?".

    É bom não esquecer o spray para mosquitos, imprescindível. Vara de pescar não, foi-se o tempo.

    Banana tem com certeza, mandioca também. Adoro a mandioca frita das ilhas, mas não desprezo a cozida, pelando, com manteiga. Bem fresca. Tem lá sua hora.

    nina horta

    É escritora e colunista de gastronomia da Folha há 25 anos. É formada em Educação pela USP e dona do Buffet Ginger há 26 anos.
    Escreve às quartas-feiras.

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