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    Nina Horta

    Papel, caneta e anotar o que se come

    14/06/2017 02h00

    Luciana Costa - 20.out.1996/Folhapress
    Caneta Bic [Bic.caneta] de Saulo Ramos. [FSP-Mais!-20.10.96]*** NÃO UTILIZAR SEM ANTES CHECAR CRÉDITO E LEGENDA***

    Sabem o que eu adoraria? Que cada um de nós comprasse um caderno e uma Bic e marcasse todo dia o que comeu no café da manhã, no almoço, no lanche e no jantar. Assim, simplesinho, sem receitas. Se o Brasil inteiro fizesse isso, se compartilhássemos com nossos amigos, se juntássemos isso o ano inteiro...

    Que tal um grupo só para isso? Puramente dizer o que come. Sem receitas. Um tipo de álbum, ou clube, como tantos das redes sociais. Quem quiser que coloque receitas, quem quiser que conte histórias. Ficará tudo num lugar só, pronto a ser estudado, uma vasta preciosidade. Um de nós tomaria conta desse baú precioso. Estou sugerindo a Karla Milward. Ela pode subdividir esse trabalho.

    Confesso não ter muitas esperanças, já tentei no jornal escrito e eu que recebia uma enorme correspondência, não lucrei muito com esse pedido. Mas é tão fácil! Arroz, feijão, picadinho, farofa e agrião. Ou picadinho e farofa. Uma banana.

    Dessa vez vai! Quero ver chegar ajuda do Brasil inteiro. Podemos conversar sobre o assunto uma vez por mês. Alô, Acre! Vamos compartilhar esse pedido, desde a primeira vez. Todos nós preocupados com a política, mas atentos no prato. Gente que entende da coisa, antropólogos, nutricionistas, simples comedores! Explico melhor nas nossas conversas do Facebook para não virar textão demais!

    Estou com dois livrinhos em mãos, simples, bem feitos, sem ilustrações, práticos. O francês foi patrocinado pelo Conselho Nacional de Artes culinárias, presidido por Alain Senderens e pelos ministros da Cultura, da Agricultura, da Educação Nacional, do Turismo e da Saúde. Por grandes cozinheiros, empresários e pessoas qualificadas para o assunto. Chama-se Nord Pas-de-Calais - Produits du terroir et recettes traditionnelles. É o primeiro livro da coleção e tenta o inventário culinário da França.

    O que queriam? Uma pequena história dos ingredientes de cada rincão da França. Começaram com Pas-de-Calais, que lhes parecia um lugar onde se produzia muito e se consumia pouco. Essa economia contribuiu muito para o desenvolvimento da região e do país. Gostavam de melado, talvez uma doçura barata. A comida pobre, sem frutas, sem doces. Tomava-se pela manhã com o pão uma tisana de chicória chamada café, mas sem café, às dez horas uma tigela de sopa.

    Ao meio dia, batatas inglesa e queijos brancos. A carne era reservada para os domingos, um ragu, geralmente. Muitas vezes era um ragu sem carne, cebolas, batatas, tomilho, louro, manteiga. Com a sopa havia variações, purê de couve-flor, cenouras, feijão branco e de vez em quando um bom pedaço de gordura. Nem cerveja se bebia.

    E peixe? Bacalhau na sexta preparado em salada com as batatas —arenque com batatas com casca.

    Com comida tão parca como explicar as tradições culinárias às vezes muito ricas dessa região?

    Pelas festas. Quermesses, casamentos, é uma terra festeira. Um animal se pagava com a vida toda. Especialidade era o coelho com ameixas pretas. Havia também o grande prato flamengo com quatro carnes. O coelho, o frango, o vitelo e o porco, envoltos numa gelatina deliciosamente feita pelas cozinheiras.

    Segue-se no livro o método pelo qual foi feita a pesquisa e depois os ingredientes sem receitas detalhadas, mas especificando-se o modo pelo qual era feitas as comidas em geral.

    Parece um tédio de livro, não? Pois não é. Informativo, bem escrito, um levantamento muito útil de uma região francesa. Demoraram dois anos fazendo isso. É da Albin Michel / CNAC.

    O outro livro é mexicano. E chama-se Recetario tradicional del Distrito Federal. Não é tão científico como o outro, já está no número 58 e trata da cozinha indígena e popular, esse de Mauricio Antonio Avila Serratos. Ele se aproxima do problema do resgate como nós todos aqui, sem muita esperança que órgãos do governo o ajudem.

    Vai aos velhos tentando redefinir, como sempre, a identidade da cozinha mexicana. Resolveu estudar artes culinárias e um dia lhe disseram que o DF não tinha uma cozinha própria. Que era uma cópia das comidas de outras regiões do país. E ele pôs-se a pensar. E as "gorditas"? E os "tamales"? As "quesadillas"?, "la sopa aguada", e "el posole"? Começou a escutar as histórias e a estudar. Em 2013 tinha uma larga coleção de receitas antigas e preservadas."El que busca, encuentra." É o que vamos tentar. Uma descrição do que comemos hoje e talvez ontem. Só. Um caderno, uma Bic e boa vontade. Vamos ver. Tentar não custa.

    nina horta

    É escritora e colunista de gastronomia da Folha há 25 anos. É formada em Educação pela USP e dona do Buffet Ginger há 26 anos.
    Escreve às quartas-feiras.

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