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    Nina Horta

    Quando comecei a gostar de comida

    05/07/2017 02h00

    Raquel Cunha - 21.out.2015/Folhapress
    SAO PAULO - SP, BRASIL - 21.10.2015 - Foto da colunista da Folha e empresaria Nina Horta em sua casa em Sao Paulo. Horta lanca este mes o livro "O frango ensopado da minha mãe" pela Companhia das Letras. (Foto: Raquel Cunha/Folhapress, ILUSTRADA) ***EXCLUSIVO***
    Estante da casa de Nina Horta

    Me chamam para falar sobre o porquê de escrever sobre comida há tanto tempo. Muitas vezes nem você própria sabe, tem que dar voltas ao tempo para descobrir.

    O aparente é que, na época que comecei, se fosse para escrever em jornal, e mulher, a única possibilidade era começar com as panelas.

    Minto, com prendas domésticas. Preferiria mil vezes ter me dedicado à paixão, ao amor, aos segredos da conquista e sedução, e encantamentos com as coisas e as gentes. Imagino que sempre ligada a esse sentimento de gostar, mulher gosta muito de gostar de alguém. Tudo passa, mas gostar deixa rastro.

    Quando foi e por que me apaixonei por coisas de comer? E o que se achava em torno, o que se via, como era a vida?

    Já comentei aqui que no outro dia perguntaram à Costanza Pascolato como havia sido o processo de envelhecer. Meio de olhos arregalados, respondeu por duas. "Estava tão ocupada em viver que nem percebi."

    E de repente, agora, velhos e velhas ficaram na moda. Sempre tive pavor de ficar na moda. Há uma revista conhecida que botou o olho em mim faz tempo. Sem se explicar demais, adoram velhos que fazem coisas, mil metros rasos pela manhã, levantar a perna bem alto, lá acima da cabeça, desfilar em passarelas beneficentes, meu Deus, socorro, escondam essas tatuagens enrugadas, vocês não têm preconceitos mas eu tenho, por que não deixam os velhos serem velhos em paz?

    Nós, os comilões, temos a vantagem de sobrevoar um assunto que não tem fim, é de sobrevivência, então não sai de moda nunca. E de repente você está no meio do furacão sem nem ter percebido o porquê.

    Homenagens, gente que quer te ver, apalpar, descobrir de que matéria fui construída para durar tanto. E querem que eu fale. Que eu explique, que dê entrevistas. Será que alguém pensa que sei o que aconteceu, por que caminhos me levou a vida?

    O meu falar é pobre, sai com dificuldade, bom sempre foi ler. Atenção, bom era ler, nem escrever era. Falar dói.

    Qualquer hora vou ter que parar para pensar, tirar um dia para destrinchar a vida como se destrincha uma galinha. Por que gostei de comida e não de música, por exemplo. Quando foi que meus olhos se abriram para uma farofa na manteiga e não para Mahler? Para uma pimenta vermelha no feijão preto e não para uma equação de qualquer grau que fosse?

    Em que altura das viagens comecei a me interessar mais pelos mercados do que pela Mona Lisa? Quando foi que o paladar falou mais forte e me fez parar no México para provar goiaba verde com sal?

    Talvez a infância feliz nos Jardins com vizinhos imigrantes, a alcachofra polonesa, a piñata alemã!!!, os doces de ovos portugueses de D. Seraphita... As férias na roça, onde não existia riqueza nem pobreza, a única rua se esfarelando em pó dourado com a boiada se atropelando... Cheiro de fogão e de lenha e de capim. O lombo de porco, o ribeirão, o rego, as piabas, fritas ou não, goiaba de vez.

    E as mangueiras pojadas com as mangas gordas e amarelas e troncos de musgo. E a comida soberba e simples da avó. Só almoço, de noite era ajantarado, com café e leite e roscas vindas não sei de onde. Tudo tão simples, como é bonito o simples, branco, pano grosso, vidro opaco, leite gordo, café quente.

    E os cheiros e os primos. Primos bonitos de olhos sedosos e cílios compridos e bocas vermelhas e cabelos louros como espigas de milho.

    Vocês percebem, não posso alinhar tudo isso num discurso racional, interessante, que venha agradar um pequeno público que seja. Só se um dia me sentar e me botar a racionalizar a gosma da manga, a água muito fresca na caneca de lata gelada, a bilha impossível de fria, a umidade quase que insuportável do poço.

    Imagino que se tivessem me deixado seguir o circo que me passou pela vida, a menina circense que ficou minha amiga teria aprendido a pular entre cordas, a montar com um pé só o cavalo pangaré. Mas não, mal queria me levantar, me impediam. Fora do meu mundo estava o perigo, o desconhecido, a tentação. Fica aqui ao pé do fogão, com essas frutas, essas águas, essa terra e muitos livros. Lá longe não se sabe o que pode acontecer.

    Deve ter sido, então, que me agarrei à terra e sua comida, borralheira, esquentando junto do fogo, lavando a alma na cachoeira, escutando as galinhas, escrevendo redações na carteira com caneta de pena e tinta azul. Não me perguntem nem me contratem, nem me ofereçam dinheiro para falar do que não sei. Não me peçam teorias, não sei mesmo, pouco se passava na cabeça, muito no umbigo. Foi assim, desculpem.

    nina horta

    É escritora e colunista de gastronomia da Folha há 25 anos. É formada em Educação pela USP e dona do Buffet Ginger há 26 anos.
    Escreve às quartas-feiras.

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