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    Nina Horta

    Qualquer paixão, qualquer ilusão

    19/07/2017 02h00

    Maria do Carmo/Folhapress
    São Paulo, SP, Brasil. Restaurante Ping Pong que tera nova filial no Morumbi. Broto de bambu com camarão feito no vapor(Foto: Maria do Carmo/ Folhapress, Guia)

    Andava sem saber o que fazer de comida, todo dia, almoço e jantar, e limpava a boca com o enorme guardanapo de linho que mandara fazer com ponto ajour na barra, achava demais de bonito guardanapo grande que não fosse de papel. Tinha o problema de lavar a cada vez, mas mais vale um gosto que dois vinténs.

    A mesa era espartana, escura, retangular, tinha sido feita há muito tempo por um espanhol, uma cara de mesa que deixaria Dom Quixote feliz.

    Acontece que era tão rústica que as toalhas de casamento com morangos e flores bordadas não ornavam, como dizia a tia Petronia de olhos míopes.

    Nem louça ornava. Só panelas. Descobrira uma toalha grosseira, branca, feita no tear manual pela bisavó, assim diziam. Nas pontas uma espécie de macramé. O engraçado é que depois de usar aquela toalha não conseguia pôr a mesa com as outras do enxoval.

    Sempre demasiadas, muito bordado, muito pano. Flor daqui, flor dali, morangos, amores perfeitos. A outra, da bisavó, na sua brancura de freira contava mais histórias, por incrível
    que pareça.

    Abriu a porta da geladeira distraída, mas o bafo frio fez com que prestasse atenção. Na parte de verduras uns rabanetes, uns verdes metidos em plástico, vidros de não se sabe o quê, pela metade. Não cobria restos de comida com filmes, mas sim com aquelas toucas furadas que se usam na cozinha. Achava que tudo tampado com plástico ficava com cheiro intenso de... guardado no plástico. Se tinha lugar para enfear a comida era uma geladeira, um morgue, tudo apertado, os ovos em fila, a rúcula apequenada, a salsa murcha.

    Tipo da coisa que exige um pouco de paixão é cozinha. Qualquer paixão, qualquer ilusão. E você pega a cebola com mais amor, o cheiro do alho não aborrece, descobre tons na carne, sente a matéria nos dedos, a consistência de tudo é mais agradável, entende o ingrediente. De má vontade tudo é uma pequena repulsa, tem que domar os seus próprios instintos de jogar no lixo e ir chorar na porta, olhando o quintal cheio de folhas, limpando os olhos com a ponta do avental.

    Resolveu fazer como as parteiras de filmes antigos, mal chegavam para um parto e já punham uma chaleira no fogo para ferver a água. Como nos tempos de "E o Vento Levou".
    Tinha muitos daqueles "steamers" de bambu que haviam sobrado do buffet. Pequenos, médios, grandes, não tivera coragem de jogar fora e ninguém queria de presente, nem dado. E era tão fácil cozinhar com eles... Um tipo de comida em cada andar, água por baixo e tudo cozinhava no vapor, rapidamente. Podia fazer o pão da Mari Hirata, coisa mais fácil. Tinha a receitinha grudada na geladeira, podia fazer mil vezes, mas a receita era como uma bengala que lhe dava segurança: 5 claras, 1/3 de copo de açúcar, ½ copo de farinha de trigo, uma colher de fermento em pó, banha para untar.

    Já fazia quase que sem pensar, peneirava a farinha junto com o fermento. Batia as claras em neve, juntando o açúcar aos poucos e misturava os secos com os molhados, docemente. Zás, numa forma untada que ia para o "steamer" de bambu. Só uns 20 minutos. Já tinha feito com cuscuzeiro e dava certo também. Apagou a água que pusera para ferver e que seria inútil, nenhum pickaninny a nascer. Imagine, era tão boba quando menina que se pusera a decorar "E o Vento Levou" e até que decorou os primeiros parágrafos. "Scarlet O' Hara wasn't beautiful but men seldom realized that, when caught by her charm as..." Separou uns legumes, arrumou sem nem sentir o que estava fazendo e colocou na prateleira de cima do "steamer", na hora passaria um peito de frango na frigideira, poderia juntar ao "steamer", mas ficaria tudo muito branco, queria alguma coisa mais durinha, mais marrom, caramelada, para comer com os legumes e o pão.

    Tudo bem, não iria até a porta, choraria aquela lágrima única por ali mesmo, mas secaria o rosto com a ponta do avental e limparia a boca com o guardanapo de linho.

    nina horta

    É escritora e colunista de gastronomia da Folha há 25 anos. É formada em Educação pela USP e dona do Buffet Ginger há 26 anos.
    Escreve às quartas-feiras.

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