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    Nina Horta

    Primeiro capítulo do livro 'Pequenas entrevistas e grandes receitas'

    30/08/2017 02h00

    Divulgação
    da James Beard Foundation
    O escritor James Beard

    Acabei de reler uma autobiografia do cozinheiro James Beard (1903 - 1985), americano. Desde a primeira leitura, achei que seu livro, por sinal muito bem cuidado pela Gollancz, seria um dos melhores nessa minha longa vida de leitora de livros de cozinha. Inspirador, misturando reminiscências e receitas.

    Em toda e qualquer história que se conta dele, aparece a imagem da mãe. Quem era essa mãe tão lembrada por ele? Uma inglesinha pobre e atrevida que adolescente ainda resolve viajar para os Estados Unidos e se empregar como babá com um casal de canadenses. Dois anos depois eles voltam para o Canadá e ela resolve continuar em Portland Oregon, lugar onde estavam na época. Emprega-se num hotel da cidade comportada e rica.

    Era uma mulher diferente, uns vinte anos na frente das outras, livre, nada submissa aos homens, o tipo que ao atravessar uma sala chamava para si todos os olhares. Casou-se, já não tão menina, e o pai de James Beard vai funcionar como um simples acessório na vida da mulher e do filho.

    Elizabeth Brennan compra uma casa que transforma num hotel e que dirige com precisão, mão forte, e no qual vai aprendendo e ensinando o máximo do que se poderia chamar de prendas domésticas da época. É perfeccionista, cozinha muito bem, sabe organizar menus, dá conforto e bem estar aos hóspedes.

    Elizabeth, pelos lugares que trabalhou, pelas festas que frequentou, pelos amigos que cultivava no mundo do teatro, entendia muito de comida e de como apresentá-la. Era ótima em menus, sabia as técnicas da cozinha francesa, mas não consegue trabalhar bem com os chefs franceses que não paravam no emprego e sai atrás de cozinheiro chineses na colônia de Oregon.

    Consegue três auxiliares que ficam com ela por anos a seguir, principalmente Let, que James Beard lembra com saudade de filho.

    O menino James nasce para ser mimado, cuidado e ensinado pela mãe. Quase não vê o pai, e vive a vida de adultos no meio dos amigos da família que estavam sempre no hotel. A impressão que dá é de um garoto insuportável, falante, metido, guloso, já bem gordo na infância e só não é muito vítima de bullying no colégio por ser inteligente, engraçado e por saber rir de si próprio. Simpático, apesar de tudo.

    Diferente dos outros por ser homossexual, é mandado embora do bom colégio que frequentava sem muitas explicações.

    Nessa época sua mãe já imaginava para ele uma vida de ator, e durante muitos anos ele tenta os palcos, a ópera, estuda canto, mas sua obesidade o impede de ganhar bons papéis. Na sua obstinação de subir ao palco e as impossibilidades que se apresentam, sobravam para ele os atores, as pessoas interessantes do teatro e do mundo e... a comida. Londres, Paris, Nova York conhecendo gente, encantando a todos com sua verve e prazer em comer. A capacidade de se promover e de ser apreciado por outras pessoas se fazia cada vez mais natural em James Beard.

    Não se voltou para a cozinha como profissão, era o que lhe era natural, como boiar nas águas do mar num dia quente na maravilhosa costa de Oregon. Foi caminhando devagar, mas muito comunicativo, e depois de vagabundear por toda Nova York, experimentar um pouco de tudo e fazer comida para os amigos, encontra alguém que resolve ser seu sócio numa firma de nada mais, nada menos, que coquetéis.

    Comida de bufê, mas que evitasse os patês sobre pão mole e os eternos palitinhos de azeitonas e queijos não identificáveis. Criativo e bem preparado como era, inventa ao seu bel prazer. Coisas simples e maravilhosamente complicadas, começava o revival de comida boa nos Estados Unidos e ele estava a postos para comandar o movimento. Sanduíches abertos, pepinos fazendo as vezes de pão, allumettes, barquetes, pasteizinhos e até vichyssoises, frutas secas recheadas, pequenos almoços, bolos ingleses, enfim, tudo o que sabemos hoje, mas que não se sabia antes. Fresco, bonito e bom.

    Só poderia ser um sucesso. Toda a cidade querendo receber, ver e ser vista. Coquetéis para os encontros entraram na ordem do dia. A certa altura, depois de um sucesso justificado, resolve escrever um livro. Por que não detalhar por escrito o que era um coquetel e como fazê-lo para que a reunião se desenrolasse sobre carretéis?

    "Não se esqueçam que o coquetel é uma festa e sua casa precisa refletir essa ideia. Flores e luz e uma acolhida simpática são tão importantes quanto a comida e a bebida."

    "Os convidados precisam gostar uns dos outros. Lembre-se dos Montagues e Capuletos e misture-os com juízo." Foi um sucesso, assim como a firma que começou a atender clientes importantes.

    Vai tudo muito bem até começar a guerra e com ela o racionamento. A firma fecha, mas o escritor não para. Outro livro sobre a vida ao ar livre, churrascos, bem americano, vende muito, James Beard e seu editor pareciam adivinhar a mais nova moda, a "trend" mais provável e acertavam na mosca.

    Passa a Segunda Guerra de cidade em cidade tomando conta de restaurantes para soldados americanos que sentem saudade de casa. Entende que a comida o faz mais íntimo dos lugares onde trabalha e não se cansa de descobrir novidades. Grande surpresa é encontrá-lo no Rio de Janeiro, gerente de um hotel. "O Rio era uma cidade gloriosa tínhamos lá um clube soberbo —uma bela casa antiga, muito bem mobiliada e equipada. Na cozinha, herdei um chef de pouco talento que fazia filé-mignon, batatas recheadas de batatas e outras pièces montées que não tinham nada a ver com o ambiente caseiro que procurávamos. O desperdício era impressionante, mandei o cara embora, acabei com um exército de baratas que morava na cozinha e contratei uma Manuela que cozinhava maravilhosamente bem e conseguia segurar a cinza na ponta do cigarro por mais tempo que qualquer pessoa que jamais conheci."

    "Logo a cozinha começou a funcionar em grande estilo. Criávamos perus no quintal e comprávamos comida muito fresca nas feiras do Rio. As frutas eram maravilhosas e eu enfeitava todas as vasilhas da casa com elas. Manuela fazia uma sobremesa com bananas que tinha que estar no menu diariamente. Bananas caramelizadas com merengue, ao forno, mas servidas frias e um creme doce feito com abacates."

    Acabada a guerra, de volta a Nova York, vive de bicos arranjados por amigos, até que estrela o primeiro show de comida de TV no mundo. Já imaginaram? O precursor dessa avalanche que nos envolve agora. Mas, por incrível que pareça, não fez muito sucesso com um programa só
    dele. Sua verve e erudição não apareciam bem na TV. Não durou muito, mas foi o primeiro.

    Ao começar a ficar famoso e a respeitarem sua opinião, se engaja na propaganda de todos os produtos que querem aproveitar sua credibilidade, seu sorriso largo dentro do corpanzil.

    "Sou a prostituta-mor do cenário gastronômico", gabava-se ele.

    Foi convidado a ser crítico da "Gourmet", cargo dos mais honrosos, e a essas alturas já era um nome extremamente conhecido nos Estados Unidos, com sua presciência de adivinhar qual seria a próxima moda a se afirmar no âmbito das comidas. Descobriu que gostava mesmo de escrever, de ser professor, na verdade, e a ligação com poderosas "fábricas de comida" o ajudava a ganhar a vida enquanto ensinava e escrevia.

    Podemos ver passar por ele todas as modas que se firmaram, como o desprezo pela comida caseira, a celebridade fulgurante dos chefs, as dietas de emagrecimento. A comida como remédio, a nouvelle cuisine (passa uma semana no spa de Guérard), as ideias das nutricionistas, a técnica superando o ingrediente, o consumismo dos anos 1980. Vai assimilando o que acha interessante, ajuda aqueles que dentro das tendências se sobressaem de algum modo, mas jamais se esquece que o que interessa mesmo é uma comida compartilhada e que dê prazer.

    Poderíamos tê-lo agora, em qualquer jornal ou revista de nosso tempo, recomendando os produtos da estação, comidas frescas, bons e próximos fornecedores. Incrível, pois estava vivendo nos anos 1950, quando a América se rendia à casserole, uma boa frigideira com três a quatro produtos enlatados que eram a coqueluche das donas de casa, como brócolis com atum em óleo, com bastante queijo amarelo por cima e cinco minutos de forno.

    Desenvolveu seus dotes de professor e sua escola foi de vento em popa. Era bom para ensinar, gostava que os alunos pusessem a mão na massa e seus cursos faziam sucesso, tinham sempre casa cheia. Apesar de muito gordo e comilão sem arrependimentos, era de uma atividade impressionante, se dividia entre viagens à Europa, Oregon, sua cidade natal, lançamento de livros, consultoria de restaurantes, cuidado com as aulas e a fofoca intensa que invadia o mundo da cozinha. Quem foi promovido, quem brigou com quem, a nova estrela, o crítico feroz...

    Logo sua simpatia e capacidade se tornam conhecidas no mundo, e faz amigos como Craig Clayborne, Elizabeth David, M. K. Fisher, Paula Wolfert, Julia Child, que diz dele: "no começo era James Beard".

    Torna-se uma das figuras mais importantes no cenário da comida americana. O seu livro "Delights and Prejudices", suas memórias de infância e adolescência, a meu ver é extremamente bem escrito e verdadeiro. O serviço prestado aos americanos não cabe nessa pequeníssima introdução sobre o genial cozinheiro autodidata que fez de sua vida uma homenagem ao bom produto e tentou mostrar a milhares de alunos e leitores como cozinhar esse mesmo produto com simplicidade e rigor.

    Restaram seus livros ainda muito vendidos e preciosos em informação que podem, alguns anos depois, nos enriquecer.

    Na semana que vem, leia a entrevista fake com James Beard.

    nina horta

    É escritora e colunista de gastronomia da Folha há 25 anos. É formada em Educação pela USP e dona do Buffet Ginger há 26 anos.
    Escreve às quartas-feiras.

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