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    Nina Horta

    Entrevista fake com o cozinheiro James Beard

    06/09/2017 02h00

    Divulgação
    da James Beard Foundation
    O cozinheiro James Beard

    Conforme anunciado no texto "Primeiro capítulo do livro 'Pequenas entrevistas e grandes receitas', publicado no último dia 30, segue o texto da colunista com uma "falsa entrevista" do cozinheiro James Beard (1903-1985).

    *

    Encontramos com ele em sua casa nova-iorquina de tijolinhos aparentes, na Twelfth Street. Hora do brunch. Basta dizer que nos recebeu de penhoar cor-de-rosa e chinelos de pompom. Mais tarde, depois de tomar café e de uma boa conversa, iria se vestir como sempre, com sua famosa gravata borboleta. Muito gordo, careca brilhando, de uma simpatia irradiante. Apesar de seus 80 anos, parecia mesmo o homem generoso que primeiro alertou o americano médio de que existia outra coisa além do macarrão com queijo ao forno.

    Voltou para a entrevista com sua célebre gravata borboleta, depois de dar um pequeno beijo de despedida na bochecha de seu companheiro Gino, que descera as escadas atrasado para o chá da manhã que compartilhavam diariamente.

    Nina Horta - A pergunta inevitável: as suas primeiras sensações ligadas ao paladar. Assim ficamos logo livres dela e das madeleines de Proust.

    James Beard - Ah, quase tudo ligado à minha mãe. Muitos bolos, os moluscos, os caranguejos, salmão, mexilhões e trutas das costas de Oregon. O coelho feito pelo nosso cozinheiro chinês; os aspargos brancos que minha mãe enlatava, e o monte de comida boa que os dois preparavam na mais memorável das cozinhas.

    Claro que a cozinha foi o lugar da maior aventura gastronômica da qual me lembro. Entrei engatinhando na despensa e escolhi uma cebola enorme que comi com casca e tudo. Deve ter me marcado para o resto da vida, até hoje adoro uma cebola crua.

    Tão pequeno assim, não vale. Lembre alguma coisa já crescido.
    Três anos serve? Eu estava de cama com sarampo ou catapora, nem me lembro direito. Sem apetite e recusando toda e qualquer comida, a não ser colheradas de uma gelatina de galinha, a coisa mais saborosa que já provei na minha vida. Nada mais me importava, só aquela dieta única. Era magicamente boa, não dá nem para explicar e até hoje um franguinho bem preparado é minha comida predileta.

    Você sabe como era feita a tal gelatina?
    Claro, fazia-se muito em casa. Era cozida devagarinho, com cuidado, começando com mais ou menos 1,5 kg de pescoços, moelas, pés, cabeças, carcaças, e cobertos com água onde ia uma cebola toda espetada de cravos, um pedaço de salsão e uns ramos de salsa. Cozinhava-se por uma hora, mais ou menos, e temperava-se com sal. Depois, mais uma hora de fogo e então coava-se. Nesse caldo cozinhava-se uma bela galinha de bom tamanho, cortada em pedaços, até que a carne caísse dos ossos. Provava-se, corrigia-se o tempero e era clarificada.

    Clarificada como?
    Era passada por um guardanapo de linho, aí juntava-se a ela a clara de um ovo e a casca e era levada a ferver e coada de novo num outro guardanapo. Finalmente deixava-se esfriar e gelar. A gelatina era a pura essência da galinha, com uma textura inacreditável.

    Será que hoje em dia alguém se daria ao trabalho de fazer uma gelatina dessas?
    Não, duvido, só se estiverem de regime ou doentes, mas gelatina de galinha tem enormes usos na cozinha até hoje. Dá uma levantada no cozimento de qualquer legume. Pode virar uma vichyssoise espetacular, é a base de muito molho gostoso. Para um chaud-froid é indispensável. Nos dias de hoje faço a mesma coisa, mas de um jeito menos complicado. Fica tão boa quanto.

    Se essa é sua maior lembrança, qual a pior?
    Leite. Detestava leite, frio ou quente. Não conseguia achar que fosse uma bebida normal, e se algum adulto me obrigava a beber eu adoecia na hora. Até hoje não posso ver uma pessoa acompanhando a refeição com leite. Com o correr da vida fui me acostumando ao leite misturado a outros ingredientes e faço uma sopinha de vôngole muito saborosa, depois te dou a receita.

    Você é um desses privilegiados que consegue se lembrar de sabores antigos na perfeição...
    Chamo isso de "memória de gosto" e acho que é um talento dado por Deus, assim como um ouvido absoluto, e faz a vida mais interessante se você tem essa sorte. É de nascença, não se aprende. Os donos de grandes paladares tem que depender disso para julgar os vinhos. Provadores de queijo, de chá, todos dependem de suas memórias de gosto. Grandes gourmets também são obrigados a ter essa memória desenvolvida, senão nem se dariam ao trabalho de provar, degustar e comer com tanta satisfação. E é claro que cozinheiros, grandes chefs, dependem da memória gustativa para criar um novo prato e mesmo para apreciar uma novidade feita por outro companheiro.

    E todas essas lembranças de comida de mãe e de avó, você acha que são corretas? Quase todo mundo tem uma avó que era a melhor cozinheira do mundo.
    Não, nem todas as lembranças são verdadeiras. O bolo de chocolate da mãe e os biscoitos fritos da avó geralmente estão ligados a tempos felizes. Se essas mesmas comidas fossem apresentadas a paladares sofisticados não teriam a nota dez que lhes damos. A comida de infância nunca é tão boa quanto lembramos dela.

    Mas nas suas lembranças você acredita?
    Acredito. Desenvolvi esse dom muito cedo na minha vida. Não dava prioridade a nenhum cozinheiro de minha casa. Era o mais objetivo possível e muito precoce, o que me fez apreciar cedo uma comida boa, mas também detestar comida medíocre. Bem pequeno e inocente, fiz minha mãe passar muita vergonha dando palpites sobre os pratos feitos pelas amigas dela.

    E seu pai, contribuiu alguma coisa para o seu futuro e imenso currículo?
    Tanto meu pai como minha mãe tinham um ótimo paladar. Meu pai, um pouco menos, e minha mãe costumava caçoar dele. Ele adorava quando ela viajava e ele podia fazer o que queria na cozinha. Mas a especialidade dele era um café da manhã que os amigos adoravam e que pediam sempre que se hospedavam lá em casa. Era um tipo de brunch de domingo, e era frango também, em pedaços, salteado com bacon e que ele servia com um tipo de biscoito quente ou mesmo com torradas. No inverno o frango era substituído por linguiça, peixe defumado ou presunto. Era tudo muito bom, de verdade.

    Mas sua mãe ganhava de todo mundo se houvesse um concurso, certo? Pelo menos para você.
    Não, ela era melhor mesmo. Adorava cozinhar, conversar sobre comida, mais do que qualquer pessoa que jamais conheci. E entendia de comida internacional, o que não era comum na época. Estava uns dez anos à frente dos tempos, inclusive socialmente. Quando as mulheres ainda eram tímidas e subordinadas aos homens minha mãe era forte, sem medo.

    Atravessava uma sala com um ar determinado, com autoridade, e enfrentava os homens em pé de igualdade. Em toda reunião social os homens estavam sempre ao pé dela, conversando e rindo, e saía para pescarias, colheita de berries, usando a mesma linguagem. Tinha uma multidão de amigos. Além de culta, entendia da boa mesa, da comida a ser servida e dos costumes da época. Fez disso sua carreira.

    Sei que comandou um pequeno hotel em Oregon. Era americana?
    Não, inglesa, mas veio para os EUA aos 16 anos. Aventureira, veio ser babá de uma família canadense. Isso foi em 1870, imagine. Viajou com eles por dois anos e estavam em Portland quando o patrão foi chamado de volta. Ela preferiu ficar por aqui mesmo, empregou-se numa cadeia de hotéis e trabalhou muito economizando dinheiro pra viagens. Era o que mais adorava. Casou, enviuvou e acabou voltando para Portland onde se casou com meu pai.

    Parece que sua vida está inextricavelmente ligada à admiração e ao aprendizado que teve com ela.
    Está, totalmente. Meu pai foi um acessório na nossa vida, tenho poucas lembranças dele, mas algumas muito boas.

    Minha mãe comprou uma casa para fazer um hotel, teve muitos problemas com chefs franceses e começou a procurar alguém que a agradasse em meio aos chineses. Foi então que encontrou Let, a chef chinesa que nos acompanhou por uma vida.

    Era uma época de muita comida francesa, sempre considerada a melhor...
    E ela fazia de tudo: ostras recheadas, carnes estufadas e muita, muita maionese! Se um dia você quiser fazer uma maionese em casa.... Hoje usam-se máquinas, mas a receita é fácil. Começa com dois ovos, uma colher de chá de sal, outra de mostarda em pó e vai-se juntando de duas a três xícaras de óleo devagar, muito devagar. Se a maionese começa a talhar é porque você está pondo óleo muito depressa. Comece de novo com outro ovo e um pouco de óleo e vá juntando a esse ovo a mistura anterior, talhada. Quando estiver grossa, dura, tempere com um pouco de vinagre e limão e uma pitada de Tabasco. Essa maionese, na geladeira, dura mais que uma semana.

    Dá para ver que você gosta de ensinar, até para falar de uma simples maionese seus olhos brilham, suas mãos se mexem. Estamos fazendo uma entrevista com o homem que mais marcou a cozinha americana e no entanto... as receitas são as mais simples possíveis.
    Verdade, mas fui criado à beira-mar e num hotel. Nas férias, por exemplo, por mais que levássemos um caminhão de comida, sobrevivíamos com o que pescávamos, o que catávamos, e isso me ensinou a reverenciar o alimento fresco, o bom ingrediente. E as melhores comidas vêm deles, só deles e do capricho com que são feitas. Pois é, já reparou como se toma sopa de tomates na Inglaterra? É um clássico, mas depende muito dos tomates... Let, a cozinheira chinesa fazia uma, mais que deliciosa...

    "Sempre usávamos conserva de tomates feita por nós. Hoje, acho que consigo resultados semelhantes com tomates italianos enlatados. Misturo duas latas de tomates com uma xícara de caldo de carne, uma cebola espetada com cravos, uma colher de chá de sal, uma folhinha de manjericão, e cozinho, panela tampada, por 30 minutos, em fogo baixo. Destampo, junto duas colheres de chá de açúcar, mais sal, se preciso. Aqueço duas xícaras de creme de leite até ferver, misturo aos tomates devagar, para não talhar, e deixo ferver de novo. Quando você tiver ervas frescas, use-as. Tomates frescos e doces, melhor ainda. Se quiser mais grossa, use um pouquinho de amido de milho, mas nós gostávamos com creme, mesmo.

    É engraçado que algumas pessoas, ou melhor, muitas não se desvencilham de sua comida de infância. É o seu caso, não é?
    É verdade, principalmente na idade madura quando as novidades não são mais tão novidades assim. Aquela praia com o vento brando, as fogueiras, os churrascos domingueiros de meu pai e toda aquela vida marinha aos nossos pés, na nossa boca. Tudo tinha um gosto diferente a ser provado pela primeira vez, o que aumentava a emoção.

    Nunca mais comi um salmão como o das costas do Oregon, da minha praia. A curiosidade intensa pela comida dos outros, os empregados dispostos a ajudar, muitas vezes se divertindo mais do que a gente, o cheiro dos pães no forno, as panquecas saltando nos nossos pratos, os ovos enormes de gema muito vermelha, tudo isso impressionava demais uma criança solitária, sem um amigo de sua idade sequer. Ah, e as ostras, aquilo era como beber um pouco do mar.

    Interessante é que você foi o primeiro a lutar pela comida americana, mas jamais desprezou a de outros países.
    Muito pelo contrário. Mas já na infância fazia excursões a Chinatown. E comíamos muita comida chinesa em casa quando Let cozinhava para mim, sem contar o monte de coisas diferentes que nos apresentavam, como picles de gengibre, lichias em calda, perfeitas lichias frescas. E o mercado! Minha mãe adorava comprar e eu também, agarrado nas saias dela.

    Enquanto conversamos com Beard, ele não demonstrou pressa, mas ouvíamos o telefone tocar sem parar e muitas vezes uma cabeça aflita se enfiava pela porta como querendo perguntar alguma coisa. Ainda se deu ao cuidado de nos apresentar a coleção de majólica que, para mim, Nina, foi demais, meio kitsch, meio linda, a completa expressão de James Beard, o cozinheiro americano mais querido da última geração e que já vai sendo esquecido a toque de caixa. Uma boa lição para nós, tão apegados a nossas estrelas, nossa comida de moda. Tudo passa, até o gordo, bonachão e incomparável James Beard.

    nina horta

    É escritora e colunista de gastronomia da Folha há 25 anos. É formada em Educação pela USP e dona do Buffet Ginger há 26 anos.
    Escreve às quartas-feiras.

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