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    Nina Horta

    Polvos amigos

    20/09/2017 02h00

    Rogério Voltan
    A especialidade de Voltan são imagens de gastronomia, como esta de um polvo

    Há livros que você pega e não dá mais jeito de largar, assim, logo no primeiro parágrafo. É o caso de "A Alma de um Polvo" ("The Soul of an Octopus"), best-seller de livros de não ficção nos Estados Unidos, de Sy Montgomery.

    Nada de Julio Verne, nem de Moby Dick, imensos monstros derrubando navios. Menos, menos. Apenas um quase modesto documentário, bem escrito. Não passa de um caso de amor entre polvos e seus cuidadores num Aquário de Boston. Nunca imaginei que alguém pudesse se apegar a um peixe como a um bicho de estimação. E um polvo? Escorreguento, melado?

    Viscoso, cheio de inexplicáveis tentáculos que abraçam com ternura? Colorido macio, mudando de cores, brincando de esconde-esconde, tentando fugir em todas as oportunidades?

    Às vezes fica entediado, quem não fica? E daí é preciso inventar caixinhas difíceis de abrir, arrumar um canto cheio de Legos complicados. Ah, os polvos.

    Achei impressionante e interessante, acho que jamais me apegaria a uma criatura dos mares, tão diferente, tão estranha, se fala, fala outra língua, com certeza, que eu não entenderia nunca, vinda de outra perspectiva de vida. Será?

    Não vivem muito, temos um tempo menor do que o humano para afagar seus tentáculos, passar a mão por sua cabeça pequena, piscar maliciosamente para eles e isso, com certeza, aumenta o valor da conquista.

    Quando brincalhões ou com raiva, assopram água na nossa cara, ensopam as roupas que vestimos, pregam peças. Um deles se escondeu dentro de um macacão vazio e quase matou de susto os mergulhadores.

    São cheios de personalidade, querem conhecer o mundo, entender o que se passa e têm 300 milhões de neurônios no cérebro. (Nós temos 100 bilhões.)

    São como nós, ao envelhecer, vão perdendo a graça, o lustre. Desistem de fazer rir, com sua graça infinda. Quando morrem deixam os amigos enlutados e chorosos e, aqui para nós, com vergonha de contar aos outros que choram por um polvo.

    Nossa autora achava Kali o polvo fêmea mais lindo que já vira. Tinha esse nome por ser feminina, miudinha e ter um pinta branca na testa. Brincava, aprendia intensamente, lembrava-se das pessoas, prestava atenção, comparava, podia gostar ou não, também podia ser ciumenta a nossa Kali.

    Tão diferente de nós e tão parecidos. Polvos amigos. Assim, pela manhã, na hora do café com leite, não alterada por nenhuma droga, nem em meditação de consciência universal, pode-se comungar com a diversidade, com a alma de um polvo E eu que queria comer meu polvo ensopado, cozido à portuguesa vim descobri-lo vivo, inteligente, malicioso, carinhoso. Há que ser muito especial para se dizer amigo de um polvo. Sem querer estragar a ideia da amizade, vamos a um último spoiler. Eles têm endereço. Tonmo.com - The Octopus New Magazine Online e no blog Cephalove.

    Quem quiser comê-los em fatias é melhor esquecer onde encontrá-los seja no mar ou nos aquários e se dirigir direto aos mercados e feiras.

    nina horta

    É escritora e colunista de gastronomia da Folha há 25 anos. É formada em Educação pela USP e dona do Buffet Ginger há 26 anos.
    Escreve às quartas-feiras.

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