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    Nina Horta

    Sem correrias e sem prêmios

    27/09/2017 02h00

    Lucas Lacaz Ruiz/Folhapress
    2012-12-09 FRUTAS DA ÉPOCA EM BANCAS NO HORTIFRUTI DE BAIRRO EM SÃO JOSÉ DOS CAMPOS - SP BRASIL . PHOTOS LUCAS LACAZ RUIZ / A13 NA FOTO MANDIOCA

    Chegou assim como quem não quer nada. Dois dias de faxina rápida e pronto.

    "Cozinhar, detesto e não sei. Só como verdura. Lá na casa de mãe o que mais tinha era verdura de todo jeito que ela mesma plantava e fruta dava no quintal de todo mundo, dinheiro não tinha, mas comida não faltava."

    Os pais morreram, foi trabalhar em Salvador, na época em que todo mundo fazia um curso de inglês pela TV, isso é, começava um curso e punha aparelho nos dentes e estudava para cabeleireira.

    Continuou trabalhando e muito e por isso os cursos foram ficando de lado, comprou um terreninho e imaginou lá o salão. Daí em diante, veio para São Paulo ganhar mais dinheiro, que ia mandando para os amigos pedreiros.

    Foi a Salvador no fim do ano, diz que está quase pronto, mas e o arrependimento? Nesse tempo pequeno todo mundo que conhecia se mudou pra cá e vai ficar fazendo cabelo em quem, em Salvador? Só tem uma irmã e ela está aqui, foi bobagem essa casinha lá.

    - Pois vende e tenta comprar outra aqui.

    - Mas, sei não, tá cheio de salão aqui, mais um?

    E continua nos empregos. Diz que gosta assim, cada dia um, o divertimento do ônibus, é lá que faz amigas, mas se eu quero saber nem de amigas tem muito tempo, uma correria sem fim e no fim de semana tem que arrumar o quarto porque é pra lá de bagunceira. Tenta arrumar porque, se encosta na cama, dorme o fim de semana inteirinho, nem come.

    Detestou as comidas daqui, as novidades. Acha que tem que ter feijão e arroz todo dia e não se conforma com o contrário. No outro dia cozinhamos juntas com restos de geladeira e riu muito pois a mistura era grande e nada ficou muito gostoso.

    Parece que criou ânimo, pois se a patroa fazia aquele tipo de rango mexidinho, ela também tinha lá suas chances.

    Começou com arroz com cebola queimada, porque num dos dias da semana trabalha numa casa de árabes. E foi um sucesso, é claro. Muito bem feitinho. Não tardaram as saladas e legumes. Nos legumes é louvar a mãe que lhe ensinou, tudo só passado na frigideira, quase cru. Dir-se-ia uma grande chef. Tem a mão certeira para o sal e para a consistência. Eu que me arrepio toda com abobrinha, já lhe fiz a vontade de comer umas duas vezes e nem precisei fingir que estava gostoso. Estava mesmo, cortada à julienne e quase cruas.

    Entende de cará, abóbora, mandioca, que faz sem frescuras, sem temperos, e é assim que deve ser. Experimentou dill, achou forte, mas depois voltou atrás, porque era forte só na língua, depois na garganta já ia perdendo a força. Na verdade, nasceu para vegetariana pois nada que lhe ensinam de carnes repete, nem galinha. Porco ainda vai, especialmente se for uma costelinha de boa qualidade e com bastante gordura. Faz no forno, rápida, e serve com farofa, coisa que não resisto. Logo que começou a trabalhar teve patrões vegetarianos, daqueles sérios, de verdade, e pegou o gosto, pelo jeito.

    Esse ano vai dar tudo certo, tira o aparelho de dentes que já usa há cinco anos e resolve a história do salão lá na Bahia. Que Deus a ouça, e que não queime mais o feijão e aprenda a fazer ovo frito que é a coisa mais difícil que acha no mundo, sai sempre ovo mexido.

    No começo aceitou comer comigo na mesa, mas era desagradável, tanta cara feia que fazia para comida nova. Foi disfarçando, diz que almoça muito tarde e que jantar não é com ela, que está engordando. É para não ser submetida a qualquer daquelas coisas que fogem ao seu paladar. Mas na cozinha, prova, porque passadas umas semanas pode repetir aquele prato que gostou. Sem querer, temos uma MasterChef em casa, sem correrias e sem prêmios.

    nina horta

    É escritora e colunista de gastronomia da Folha há 25 anos. É formada em Educação pela USP e dona do Buffet Ginger há 26 anos.
    Escreve às quartas-feiras.

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