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    Nina Horta

    É preciso ter jogo de cintura para ser entrevistado em um programa de TV

    25/10/2017 02h00

    Às vezes, me convidam para ir à TV falar sobre a profissão de cozinheira ou de cronista. Fujo, adoeço, porque na realidade não sei responder às perguntas, perguntas que já me fiz tantas vezes e que mudam de resposta e de contorno a cada vez, a cada circunstância, a cada faixa de vida. A alma mudada, com um jeito diferente, um caco a mais na urdidura e que você nem percebeu.

    Já fomos Carême, Ofélia, Palmirinha, Bocuse, Adrià, promíscuos veículos de influências que nos rodeiam como moscas importunas, que não nos deixam parar e solidificar uma imagem. Ultimamente a moda é tostar, queimar. Eu me lembro do Noma botando fogo em palha para defumar. Hoje em dia, é tudo defumado. Dou risada. Já passei por isso e o que nos deixa encantados na primeira semana nos enjoa totalmente. Defuma o camarão, defuma a piabinha, ficava tudo aquela delícia, até que corta, esquece, defumado nunca mais.

    E ainda tem as perguntas sobre a escrita, para complicar. As crônicas, feitas para serem lidas e não faladas, e que faladas perdem o estilo e a graça.

    Raquel Cunha/Folhapress
    SAO PAULO - SP, BRASIL - 21.10.2015 - A colunista da Folha e empresaria Nina Horta em sua casa em Sao Paulo. Horta lanca este mes o livro "O frango ensopado da minha mãe" pela Companhia das Letras. (Foto: Raquel Cunha/Folhapress, ILUSTRADA) ***EXCLUSIVO***
    Nina Horta, em sua casa, em São Paulo

    E as perguntas do perguntador oficial sobre o que se passa no mundo —explique-me sobre os atuais programas culinários que se espalharam de tal jeito que não há como evitá-los. Qual o motivo disso? E ocorre que você já leu, já se perguntou, já deu respostas variadas, mas de verdade, mesmo, não sabe... Já houve vezes que achou que os telespectadores se acostumaram, esperam pela repetição, pela redundância. É um descanso dentro do mesmo, do repetido, como as histórias infantis que não podem pular uma vírgula sem a indignação da criança. É uma fórmula e é a fórmula que estamos buscando.

    Ou será que as produções são mais baratas (e que na verdade não são sobre cozinha) são reality shows?

    Ou um cientista avançado que afirma que simplesmente o nosso olhar sobre uma ação, como a de cozinhar, por exemplo, tem o mesmo efeito que cozinhar de verdade? E que o marido, sentadão no sofá, pensa que foi ele que fez o nhoque do italiano-cozinheiro?

    Sempre existiram proibições alimentares, mas as de hoje dependem de um ponto de vista, de uma escolha individual, e não se ligam a pertencimento a um grupo especial, religioso ou o que for. Alguns são regimes nada científicos que entram na moda. Outros são "doenças" novas que não existiam antes. Outras são gostos pessoais, mas o que todas têm em comum é afastar a pessoa do convívio, da partilha. É o indivíduo versus a coletividade. É a negação da reciprocidade. É a merenda a sós, é a lancheira.

    E na conversa à procura da resposta sentimos que ao falar de cozinha e de linguagem estamos falando da mesma coisa. A literatura é um panelão em que se cozinham as palavras, os vocábulos, nos quais se escolhem os temperos. Nossa comida é nossa crônica. Cozinheiros das panelas e das letras são apenas visões de mundo.

    São tantos os elementos, peças de um enorme jogo, blocos e blocos de preparações semelhantes, uma vontade de se dizer o que não se sabe, de se cozinhar o que se desconhece. E os mesmos ingredientes juntados de uma forma nova apresentam surpresas, são um susto para nós mesmos. Como? Uma melancia salgada e em churrasco? Dá mais que ano de assunto, ah, o costume!

    Vamos tanto na cozinha como na linguagem usar as mesmas peças, rearrumar a casa, dispor de modo diferente os enfeites, mudar as flores dos vasos, é só isso.

    Muito cozinheiro novo não entende, por exemplo, o valor das viagens, dos deslocamentos, dos pontos de vista diferentes. Somos colecionadores de pequenos pedaços que um dia irão se compor num todo maior. No cozido? Numa crônica? Tanto faz.

    E temos a caligrafia. O que é mais importante, o ingrediente em si ou o modo de apresentá-lo? A forma e o conteúdo, a forma como conteúdo, ah, como isso é verdade tanto na crônica como no prato. Os ingredientes se repetindo, repetindo, mas a aparência sendo outra muda o gosto, muda o cheiro. Uma travessa de arroz num daqueles pirex marrons ou beges de supermercado, e um monumento de arroz, muito alto no centro de uma mesa de bufê, enfeitado com florezinhas de alho azuis e os próprios alhos negros cortados ao meio e contrastando com a brancura do arroz? Juro que não tem o mesmo gosto.

    Bom, basta, é preciso mesmo ter muito jogo de cintura para ser entrevistado num programa de TV.

    nina horta

    É escritora e colunista de gastronomia da Folha há 25 anos. É formada em Educação pela USP e dona do Buffet Ginger há 26 anos.
    Escreve às quartas-feiras.

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