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    Nina Horta

    Nem só de pão vive o homem e aparecem os livros

    15/11/2017 02h00

    Tem dia que não é só de cozinha, é de tudo, e as coisas se embaralham e ocorrem contra sua vontade. E, então, é impossível fazer uma crônica nos moldes costumeiros. Para começar, ganho jabuticabas de uma amiga. Fico maravilhada com minha insuspeita eficiência. Semideitada, com o prato na barriga, a TV ligada, como.

    Com um leve roçar de dedos, cega, sei a que está levemente passada, percebo a falta de tensão na superfície. Outras muito lisas, quase estalam. Há pequeninas com um verde fio, muito fino. Um ou outro cabinho fortemente grudado, e é só segurá-lo com os dedos e puxar a fruta para a boca.

    Sei tudo de comer jabuticaba, como um bicho, uma louca, uma profetisa. Como se houvesse passado a vida na labuta. Comer jabuticaba, é claro, está no meu sangue. Antiquíssimo saber.

    E por falar nisso, fui convidada para uma festa, um almoço, (Sibaris apresenta o Giro Sibarita ) de antiquíssimo saber. Era um encontro de fornecedores de ingredientes e produtos orgânicos, sustentáveis e maravilhosamente bem feitos. Aos poucos quero desvendar com vocês cada um, visitá-los, se possível.

    Fui sem saber exatamente o que era e não pararam de me surpreender. Visitei em espírito "terroirs" jamais suspeitados: de ostras, de cervejas, de tucupis pretos, meles nativos, presunto cru, café, cachaça, doce de leite, pirarucus, arrozes, azeites...

    Divulgação
    Ostras frescas de Cananeia, litoral de SP
    Ostras frescas de Cananeia, litoral de SP

    Como eu disse acima, antiquíssimos saberes que não usamos por... falta de educação alimentar, imagino. Pequenos milagres que só se repetem com o olhar fixo na perfeição.

    Ah, se vissem o acém de carne wagyu que nos serviram, macio como um bebê, rosada por dentro, marmorizada por inteiro.

    Claro que esqueci metade, mas peguei cartões e pouco a pouco vamos nos apoderar das coisas, com sacrifício nosso e deles, deve ser muito caro produzir tais joias e caro comprá-las. Tanta crise e esses heróis tentando o melhor.

    Esse foi o dia da comida, mas nem só de pão vive o homem e apareceram livros, livros a mancheias. Um deles nem recomendo, é grosso e complexo demais. Vou ter que caminhar por ele devagar e sempre, antes de botar a boca no mundo. Chama-se "The Recognitions", de William Gaddis.

    Os outros dois são lidos numa sentada. Fernanda Torres no seu segundo livro, "A Glória e seu Cortejo de Horrores", roendo os ossinhos dos bastidores da nossa cultura teatral, de cinema e de TV, na pele de um galã que simplesmente estava lá naquela hora e foi tragado pela onda. Não sou crítica literária, sei quando gosto ou não.

    Gostei mais desse livro do que do primeiro, e sei que no próximo a autora já terá consigo mais uns truques para elaborar o estilo. Escreve aos borbotões, num único parágrafo, vai que vai e vai bem.

    Outros Cantos
    Maria Valéria Rezende
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    O outro livro é da freirinha que fuma cigarros, e que ganhou o Jabuti, nesse ano. Maria Valeria Rezende, em "Outros Cantos". É o segundo livro, decididamente melhor que o primeiro, já "truquenta", contando mais que uma história ao mesmo tempo. É lá no sem fim do sertão para onde foi enviada num ônibus, como professora do Mobral. Bom de se ler, também.

    Como quisera eu que falassem de comida, mas são anoréxicas. A freirinha ainda descreve um mó, muito bem descrita, afinal todo o trabalho do pequeno grupo com o qual ela se relaciona é feito para ganharem a honrosa e parca subsistência. O máximo que apareceu foi um cuscuz e uma banana, ora bolas, ninguém é perfeito.

    nina horta

    É escritora e colunista de gastronomia da Folha há 25 anos. É formada em Educação pela USP e dona do Buffet Ginger há 26 anos.
    Escreve às quartas-feiras.

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