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    Otavio Frias Filho

    De todas as épocas

    19/06/2016 02h00

    Quatrocentos anos depois de sua morte, transcorridos em abril, William Shakespeare continua a exercer uma influência artística incomparável. Assim como seus numerosos sonetos, a maioria de suas 38 peças teatrais é hoje pouco lida ou levada ao palco. Cinco ou seis delas, porém, são reencenadas e refilmadas compulsivamente, tendo-se incorporado faz tempo ao repertório da cultura de massas.

    Na cultura erudita dos departamentos universitários, onde há muito ranger de dentes contra o predomínio de autores homens e brancos no cânone, ninguém contesta a sério o poder imaginativo de sua obra e a qualidade poética ímpar em que é expressa. O americano Harold Bloom, um dos principais críticos literários da atualidade, chegou ao extremo de escrever que, "para mim, Shakespeare é Deus".

    O poeta inglês teria inventado a personagem moderna, que não é estática como até então, mas que muda conforme escuta a própria fala. Ao mesmo tempo, teria criado as fórmulas retóricas da nossa sensibilidade: quando lastimamos, odiamos ou cortejamos alguém, estamos, segundo Bloom, imitando as metáforas concebidas por Shakespeare.

    Haveria algo de único, se não de sobrenatural, nesse legado? A questão é menos fútil do que parece quando a deslocamos do âmbito empoeirado da bardolatria, como é chamada a devoção ao autor de "Romeu e Julieta", para as formas históricas e sociais de construção da influência literária. Quantos criadores equivalentes a Shakespeare terá havido na África, por exemplo, que nunca chegamos a conhecer ou que talvez nem tenham escrito?

    A fama literária (e artística em geral) resulta de um processo semelhante ao da seleção darwiniana; entram em jogo fatores intrínsecos, enraizados na qualidade imanente da obra, mas também os extrínsecos, que têm a ver com o ambiente em que ela foi lida e transmitida pelas gerações afora. Shakespeare foi favorecido em ambos os aspectos.

    Antes de mais nada, escreveu muito: ao menos 38 peças, enquanto se acredita que seus maiores competidores, o moralista Ben Jonson e o niilista Christopher Marlowe, tenham composto, respectivamente, 18 e 7. Os contemporâneos já distinguiam seu trabalho, de modo que suas obras completas foram logo preservadas em livro por um grupo de amigos, em 1623, apenas sete anos após sua morte.

    Foi no prefácio a essa primeira edição que o próprio Jonson publicou o famoso verso no qual prevê que ele "não pertence a esta época, mas a todas". (Rivais, entretanto, são rivais: em outro lugar, Jonson escrevera que "falta arte" ao trabalho de Shakespeare e que este sabia "pouco latim e menos grego", maneira elisabetana de chamar alguém de ignorante...)

    De toda forma, os concorrentes desapareceram cedo: Thomas Kyd, autor de uma tragédia que teria inspirado "Hamlet", morreu aos 36. Robert Greene, que escreveu um panfleto satírico no qual o jovem Shakespeare é chamado de "corvo iniciante", aos 34. E Marlowe, talvez o único a lhe fazer sombra, foi assassinado numa taverna aos 29 anos, parece que em decorrência de suas atividades como espião da Coroa.

    Além de ator (medíocre, diz a tradição), Shakespeare era produtor das próprias peças e escrevia de olho na bilheteria. Seus roteiros eram, como dizemos hoje, adaptados –apenas duas ou três peças têm enredo original. Escolhia histórias recém-publicadas, que o público já conhecesse, e as comprimia e aguçava ao máximo ao transpô-las para a cena.

    Mas o elemento decisivo foi ter escrito em inglês. Depois de um intervalo de 150 anos em que caiu em relativo esquecimento ou desprestígio (foi chamado, por exemplo, de autor "bárbaro" por Voltaire), sua obra tomou o impulso inigualável de duas hegemonias mundiais consecutivas, a britânica, no século 19, e a norte-americana, no 20.

    Além disso, dado que na época puritana de Shakespeare divertimentos como o teatro eram confinados a um só distrito de Londres, os autores escreviam para um público heterogêneo, composto de dignitários, advogados e aristocratas mas também de boêmios, prostitutas e ambulantes. Por isso, uma mesma peça continha passagens de alta tragédia mescladas a outras de comédia vulgar.

    Foi justamente essa mescla, que lembra a própria vida, o que os autores românticos passaram a enaltecer no começo do século 19, elegendo Shakespeare como seu modelo. Se o predomínio geopolítico britânico foi reiterado pelo americano, a ressurreição romântica foi reiterada pelos autores do modernismo, que, sob certo aspecto, nada mais é que o romantismo redivivo numa sociedade tecnológica.

    otavio frias filho

    Otavio Frias Filho, diretor de Redação da Folha, é autor de "Queda Livre" (Companhia das Letras, 2003) e "Cinco Peças e Uma Farsa" (Cosac Naify, 2013). Escreve aos domingos, mensalmente.

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