• Colunistas

    Thursday, 02-May-2024 04:45:03 -03
    Otavio Frias Filho

    Cine Pernambuco

    14/08/2016 02h00

    Divulgação
    Cinema: cena do filme "O Som ao Redor", de Kleber Mendonça Filho, premiado no 41º Festival Internacional de Cinema de Roterdã. O longa brasileiro levou o prêmio Fipresci, que é o prêmio da crítica internacional. (Foto: Divulgação) *** DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM ***
    Cena do filme "O Som ao Redor" (2012), de Kleber Mendonça Filho

    É quase um padrão cultural que a região menos desenvolvida de um país seja ao mesmo tempo um tesouro simbólico no qual artistas e narradores buscam inspiração. São exemplos notórios o sul profundo dos Estados Unidos, a parte meridional da Itália (o Mezzogiorno) e o Nordeste brasileiro. Talvez as regiões mais pobres estejam mais próximas dos ritmos mágicos da natureza, talvez uma inventividade compensatória se forme enquanto contrapartida das carências materiais.

    Não causa surpresa, por isso, que muitos dos melhores filmes brasileiros nos últimos anos venham de Pernambuco, onde parece bem enraizada uma política de fomento estadual, nem que tenha se firmado ali uma escola de realizadores que alcançaram um nível profissional exigente sem abandonar ambições estéticas e autorais, além de cultivar sofisticadas formas de crítica social.

    São cineastas como Lírio Ferreira ("Baile Perfumado", dirigido em parceria com Paulo Caldas, 1997), Cláudio Assis ("Amarelo Manga", 2002), Marcelo Gomes ("Cinema, Aspirinas e Urubus", 2005), Kleber Mendonça Filho ("O Som ao Redor", 2012), Hilton Lacerda ("Tatuagem", 2013) e Gabriel Mascaro ("Boi Neon", 2015), entre outros. Sempre que aparece uma vertente fecunda assim, é oportuno perguntar se haveria um substrato comum sob as diferenças entre obras e estilos individuais.

    A resposta é ainda mais elusiva no caso de um grupo de autores com tais pretensões à originalidade. Mesmo assim, talvez não seja errado pensar que a maioria dessas obras compartilha três aspectos. Existe um vivo interesse no ineditismo visual das coisas, mostradas como se vistas pela primeira vez, o que confere um ar falsamente documental, quase etnográfico, à curiosidade da câmera.

    Os roteiros são ralos ou fugidios; nesse sentido crucial o cinema pernambucano não sustenta comparação com o argentino. Mas os recifenses dizem muito por sugestão, insuflando atmosferas insólitas em contextos banais. Contribui para isso o virtuosismo das trilhas e o verismo coloquial e seco dos diálogos, para júbilo dos que padecemos sob o som inaudível e a discurseira inverossímil do antigo cinema nacional.

    São filmes que focalizam, cada um à sua maneira, certa modernização (do capitalismo, da urbanização, do consumo) que continua a seguir sua marcha implacável sem que desapareçam as formas tradicionais de domínio e sujeição, as quais se adaptam para perdurar. O velho revive no novo, esquemas arcaicos acoplados aos modernos.

    Essa pegada sociológica é ostensiva naquele que talvez seja o melhor desses filmes, "O Som ao Redor". Numa rua cheia daqueles edifícios que parecem feitos de Lego em Boa Viagem, a parte burguesa do Recife, um trio de seguranças voluntários se instala e passa a cobrar contribuição dos moradores intimidados por uma onda de furtos. Os forasteiros revelam-se a devido tempo jagunços que vieram acertar contas com o dono dos imóveis da rua, também coronel de um engenho decadente no sertão.

    Esse não é, porém, um filme de sertão, mas de classe média alta, nem a favela aparece, exceto na forma de ameaça velada, cuja aura se percebe como mal-estar circundante e indefinível, um zunido emitido numa faixa perturbadora de decibéis. Kleber Mendonça Filho filma sua aldeia, a floresta de lajotas brancas dos prédios da orla afluente onde mora, cenário também do novo filme, "Aquarius", que deve estrear em setembro.

    Trata-se de um drama imobiliário em que a derradeira moradora de um acanhado e decadente predinho em frente à praia se recusa a vender seu apartamento à construtora que comprou todos os demais para erguer ali mais um condomínio de luxo. O filme não tem o impacto do anterior, mas sua estrutura narrativa parece mais densa e sutil. De novo, apesar da onipresente sensação de um vago terror social, o acerto de contas é entre partes do lado de cá do esquivo apartheid brasileiro; de novo, o que ressalta é a tensão ambígua entre mudança e permanência.

    O que parece mais notável nesse cinema é seu ouvido musical para o gradiente que a hierarquia social emite ao ser atravessada pelas mil refrações da "cordialidade" em sua dupla acepção, amistosa e brutal. Aliás, foi um pernambucano, Gilberto Freyre, quem concebeu a arrojada ideia de que o elo oculto entre doçura e crueldade estaria na essência sadomasoquista da escravatura, legado que mutila a sociedade até hoje.

    otavio frias filho

    Otavio Frias Filho, diretor de Redação da Folha, é autor de "Queda Livre" (Companhia das Letras, 2003) e "Cinco Peças e Uma Farsa" (Cosac Naify, 2013). Escreve aos domingos, mensalmente.

    Edição impressa

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024