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    Otavio Frias Filho

    Intelectuais sob tutela

    11/09/2016 02h00

    Como o segredo de aborrecer consiste em dizer tudo (Voltaire), o valioso apanhado que a "Ilustríssima" (28/8) dedicou aos 500 anos do livro "Utopia", de Thomas Morus, não chegou a examinar a sedução hipnótica que as utopias exercem sobre um estamento em particular: os intelectuais. Ao menos na tradição ocidental, a ambição de redesenhar a sociedade de alto a baixo, conforme um plano metodicamente concebido numa escrivaninha, ocorreu a muitos deles.

    O livro de Morus é apenas um episódio marcante numa sequência que vai da "República", de Platão, passando por inúmeros visionários e reformadores religiosos, até os coletivismos de Comte e Marx no século 19, matriz das utopias modernas. O propósito é cancelar os conflitos sociais, substituindo-os pela cooperação harmônica, mesmo que ao preço de coerção e vigilância perturbadoras (foi Marx, não seus adversários, por exemplo, quem escolheu o termo "ditadura do proletariado").

    O pensamento conservador logo desenvolveu uma réplica às revoluções inspiradas em utopias. A sociedade resulta, segundo esse argumento, da decantação de fatores e instituições que evoluem conforme sobrevivem ao teste insubstituível dos séculos. Romper num golpe esse emaranhado de fios históricos seria equivalente a salvar uma árvore separando-a das raízes. As utopias são delírios cerebrinos que violam propensões da natureza humana –ou, em linguagem atual, inscritas no acervo evolutivo da espécie.

    A melhor resposta sempre foi que, sem o farol das utopias, as sociedades talvez nem sequer melhorassem; sem um horizonte igualitário ideal, que sirva para ressaltar e ameaçar as injustiças do presente, não há por que lutar pelo futuro nem apostar nele. E o futuro chegou, no século 20, em parte do globo, na forma do neologismo distopia, usado para designar paraísos terrestres, implantados pela revolução armada, que invertiam as promessas utópicas ao prodigalizar guerra, escassez e tirania.

    Surgiu uma literatura dissidente, às vezes satírica, voltada a expor as distopias coletivistas (a fascista entre as socialistas, embora naquele caso talvez calhasse melhor o termo contrautopia), na linha de escritores com origem na própria esquerda, como George Orwell e Arthur Koestler. Em chave parecida, mas a partir de matriz liberal e enfoque ensaístico, acaba de ser publicado no Brasil pelo selo Três Estrelas um dos expoentes dessa crítica, "O Ópio dos Intelectuais", originalmente lançado em 1955, do francês Raymond Aron.

    Amigo pessoal e adversário ideológico de pensadores de esquerda como Sartre e Merleau-Ponty, numa época em que o esquerdismo doutrinário exercia hegemonia cultural ainda mais unívoca do que hoje, Aron diz em essência que, colocando-se por razões morais a serviço de uma ideologia política, o intelectual logo se converte em militante a serviço do partido, divindade laica que tudo justifica e absolve. Sem perceber, abre mão da liberdade para pensar e da aptidão para criticar.

    Embora concebido como livro, "O Ópio dos Intelectuais" tem composição fragmentária, como se fosse uma compilação de artigos e palestras. Essa impressão talvez se deva ao próprio estilo de Aron, que em geral tende, apesar dos achados de aguda penetração filosófica, ao jornalístico, ao episódico, ao circunstancial, quando não incide na banalidade. Esse efeito compõe, por sua vez, um quadro de simplicidade e despretensão que de alguma maneira reforça o destemor intelectual do autor.

    Das entrelinhas de Aron emergem os contornos de uma psicologia do intelectual engajado que se converte, por coerência apaixonada, em autômato. Existe aí um apreço estético pela arquitetura totalitária, em detrimento das imperfeições da história; existe um abandono às volúpias religiosas da certeza, que dispensam da angústia de questionar e se autoquestionar; existe um desejo de escapar das intrincadas contradições do mundo em direção ao conforto das belas intenções e do maniqueísmo bem-pensante; existe uma vaidade (resíduos de cristianismo?) de se julgar moralmente superior ao próximo.

    Muita coisa mudou, é claro, desde 1955, a começar do fato de que o antagonismo geopolítico universal que dividia então o mundo ruiu, e as ideologias se tornaram mais fluidas, menos dogmáticas. Mas nem por isso a intolerância cedeu em todas as dimensões ou o fanatismo político desapareceu; ao contrário, com base em justificativas de reparação e suscetibilidade moral, a liberdade de expressão, por exemplo, está sob assalto de gravidade inaudita, tema para um comentário futuro.

    otavio frias filho

    Otavio Frias Filho, diretor de Redação da Folha, é autor de "Queda Livre" (Companhia das Letras, 2003) e "Cinco Peças e Uma Farsa" (Cosac Naify, 2013). Escreve aos domingos, mensalmente.

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