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    Otavio Frias Filho

    Brasil está se tornando mais plural sob o prisma religioso

    01/01/2017 02h00

    Pesquisa Datafolha publicada no Natal reitera que o Brasil está se tornando um país mais plural sob o prisma religioso. Em 1994, quando 75% se declaravam católicos, os evangélicos eram 14%. Agora, católicos são 50% e evangélicos 29%, enquanto outras denominações menores cresceram. A parcela que afirma não ter religião (descrentes somados aos que não seguem nenhum credo coletivo), de 5% em 94, subiu para 14%.

    Como acontece quase sempre, o nacional é manifestação de algum processo internacional mais amplo, dado que o evangelismo cresce há décadas na maioria dos países em desenvolvimento, e de modo notável na América Latina, onde se nutre do sedimento cristão depositado em séculos de catolicismo. Recente pesquisa (do Instituto Pew, de 2014) indicou que 19% dos latino-americanos se consideram evangélicos.

    O leitor de Max Weber é levado a perguntar se estaria em curso conexão semelhante à descrita em "A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo" (1904/5), ensaio do sociólogo alemão sobre o calvinismo, variante radical da Reforma, o cisma na Europa cristã que em outubro de 2017 completará 500 anos. Vale recapitular os principais passos no desdobramento, algo sinuoso, do esquema explicativo de Weber.

    A maior divergência teológica dos calvinistas era que acreditavam a sério na predestinação, ou seja, sendo Deus onisciente, há de conhecer de antemão quem está destinado à salvação e à danação eternas. O católico pode negociar calmamente a própria salvação, melhorando seu placar por meio de boas obras e obtendo, do padre, a absolvição regular dos pecados. O protestante, não. Tal constatação acarreta um súbito terror, um desatino, uma urgência que estão na raiz da ruptura luterana.

    Para mitigar a angústia, formulou-se a ideia protestante da vocação, ou seja, a marca inescrutável da graça divina, único caminho para a salvação, estaria estampada num estilo de vida, ao mesmo tempo frugal e produtivo, expresso na dedicação disciplinada a um trabalho útil, não para a existência eterna, mas para a terrena.

    Não por acaso, esse estilo é apropriado para colocar em ação as engrenagens do capitalismo. Organização metódica, trabalho e poupança, cálculo racional do interesse próprio, até a especialização moderna estariam encapsulados na vocação calvinista. De forma oblíqua, o propósito de Weber era criticar interpretações mecanicistas da história, entre elas o marxismo.

    Sem discordar do primado da instância material sobre a simbólica na conformação dos fenômenos sociais, Weber ressaltava como são quase inextricáveis as mediações entre essas duas dimensões (enfatizando uma complexidade metodológica que Marx professava, talvez sem praticar). Especula-se que o confucionismo, também estudado, aliás, por Weber, estaria em simbiose similar com a revolução capitalista em curso na China.

    Pode-se pensar algo parecido para a América Latina?

    Ao leitor interessado fica a sugestão de recorrer aos trabalhos dos sociólogos David Martin e Ricardo Mariano; enquanto o britânico acredita na validade parcial do esquema weberiano no contexto latino-americano, o brasileiro a refuta, ressaltando as diferenças entre o calvinismo e a versão hoje predominante, o pentecostalismo, que abrange, em suas numerosas dissidências, 22% da população brasileira.

    Um dos movimentos periódicos de retorno às origens, típicos da religião, o pentecostalismo surgiu nos Estados Unidos no final do século 19 e desde então despacha, impulsionadas pela pujança norte-americana, ondas de missionários mundo afora. Trata-se de vertente mística, que celebra a festa de Pentecostes (Atos, 2), quando o Espírito Santo teria outorgado aos discípulos de Cristo poderes mágicos de cura e glossolalia (falar línguas).

    Ao mesmo tempo, seu enfoque é pragmático, voltado à consecução de objetivos tangíveis como prosperidade, saúde e família. Muitas dessas denominações se estruturam como empresas dedicadas a arrecadar e investir gigantescas quantias extraídas a título de dízimo, estendendo tentáculos a uma vasta gama de negócios, à TV e à política (na atual Câmara dos Deputados, por exemplo, 37% se dizem evangélicos).

    Seria simplificador, porém, creditar todo esse processo apenas à manipulação. O pentecostalismo também compele a disciplinas que funcionam como alavanca de ascensão social, enquanto a estrutura das igrejas, sobretudo nas amplas regiões abandonadas pelo poder público, serve como rede de autoajuda.

    E quanto ao consumismo, talvez os calvinistas fossem menos ascéticos se vivessem numa sociedade afluente como a nossa. Sua salvação, afinal, já era a deste mundo.

    otavio frias filho

    Otavio Frias Filho, diretor de Redação da Folha, é autor de "Queda Livre" (Companhia das Letras, 2003) e "Cinco Peças e Uma Farsa" (Cosac Naify, 2013). Escreve aos domingos, mensalmente.

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