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    Otavio Frias Filho

    A virtù de Maquiavel e o espaço do imprevisto na política

    29/01/2017 02h00

    Eduardo Anizelli - 21.jan.2017/Folhapress
    O presidente Michel Temer, ministros, governadores e autoridades no velório de Teori Zavascki
    O presidente Michel Temer, ministros, governadores e autoridades no velório de Teori Zavascki

    Caso se confirmem as indicações preliminares de que o desaparecimento do ministro Teori Zavascki, ao contrário da suspeita que atravessou as primeiras horas, foi resultado de um acidente, semelhante à catástrofe aérea que vitimou o governador Eduardo Campos em 2014, estará reiterado o imenso lugar que cabe ao imprevisto, ao que parece fatídico nos assuntos humanos, sem dúvida, mas em particular nessa atividade sujeita a tantas variáveis que é a política.

    O próprio Maquiavel, precursor da ciência política moderna, era um empirista que concedia peso enorme ao acaso, à fortuna. No famoso capítulo 25 de seu livro mais conhecido, em que compara a fortuna à mulher, reserva-lhe ao menos metade da influência sobre os acontecimentos, designando a outra metade ("ou talvez um pouco menos") como campo suscetível de controle humano. Essa quase metade é o espaço de atuação da "virtù", entendida como mistura nas proporções certas de diligência, cautela e arrojo.

    Maquiavel, aliás, é um autor injustiçado pela banalização de seu pensamento e pelo êxito universal do malfadado adjetivo "maquiavélico". O amoralismo presente em seus escritos é consequência de uma atitude descritiva em relação à política, que hoje chamaríamos de científica, voltada a compreendê-la como mecânica de forças e fatores. Ao percorrer os caminhos necessários do próprio interesse, o desempenho dessas forças se torna visível e, em parte, previsível.

    A carreira pública de Maquiavel se deu como alto funcionário do governo republicano de Florença no interregno entre dois períodos de despotismo exercido pela família Medici. Ele simpatizava com a forma republicana, mas condicionava sua sobrevivência à obtenção de algum equilíbrio entre os "grandes" e o povo.

    Preso na restauração dos Medici, escreveu no exílio, sempre ansioso por voltar à política. Procurava um príncipe que o contratasse, mas que tivesse a "virtù" necessária para submeter o parasitismo da Igreja, expulsar os invasores estrangeiros e reunificar a Itália dos antigos romanos.

    É provável que coexistam dois níveis históricos de eventos, afinal. Num deles, que abarca em seus amplos movimentos as transformações tecnológicas da economia, bem como o gotejar contínuo da evolução dos costumes, predominam fatores irreversíveis, que o acaso pode aqui e ali contribuir para adiar ou acelerar, sem jamais evitar. Noutro nível, mais superficial e imprevisível, o dos fatos específicos, das personalidades, das datas, dos símbolos em geral, quase não há predeterminação e quem comanda é o acidente.

    Comparada ao sanguinário vale-tudo da política no passado, especialmente em períodos de turbulência e desordem agudas como a Florença de Maquiavel, a política moderna, além de muito menos violenta, é mais previsível. A crescente incapacidade de uma facção de se impor sobre as demais, dada a complexidade do conjunto, é que articula o travejamento a garantir que as regras do jogo serão respeitadas. O cumprimento da norma constitucional, mesmo que sob um clima de tripúdio de um lado e ressentimento do outro, tem sido a solitária nota positiva na desolação da política brasileira destes dias.

    Nas sociedades modernas, em especial naquelas em desenvolvimento, o crescimento da economia, medido pelo aumento do PIB, acarreta vantagens difusas que contribuem de modo decisivo para definir a percepção popular sobre o governo. Basta passar os olhos pela tabela que mostra a série histórica da evolução do PIB brasileiro ao longo das décadas, por exemplo, para constatar que rupturas de governo (e de regime), assim como presidentes impopulares, quase sempre se justapõem a desastres de dois ou três anos de crescimento zero ou negativo. A economia capitalista se desenvolve alternando fases de expansão e de contração que a maioria dos países cavalga à sua maneira, mas submetendo-se às mesmas oscilações.

    Esse seria um exemplo de como a fortuna maquiaveliana se recompõe, não só por meio dos reveses da aviação, mas pela sorte ou azar de cada presidente ao ver seu mandato coincidir com um ciclo de prosperidade ou queda. Agora, um governo sem outra legitimidade além da formal sente-se livre das urnas o bastante para implantar toda uma camada de reformas aptas a liberar forças produtivas no próximo ciclo de crescimento que, depois de três anos consecutivos de recessão, não há de tardar.

    Se a trepidação que não cessa desde 2013 não o inviabilizar pelo caminho, o consulado Temer terá sido acidente a expressar algo mais estrutural na periódica atualização capitalista.

    otavio frias filho

    Otavio Frias Filho, diretor de Redação da Folha, é autor de "Queda Livre" (Companhia das Letras, 2003) e "Cinco Peças e Uma Farsa" (Cosac Naify, 2013). Escreve aos domingos, mensalmente.

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