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    Revolução russa, 100

    Otavio Frias Filho

    Cem anos do golpe na Rússia

    08/10/2017 02h00

    AFP
    Mulher entre bustos de Stálin e Lênin em Moscou

    O termo "revolução" é usado em política para designar duas coisas. Pode indicar uma remoção imprevista do governo, em geral violenta e causada por forte agitação popular, à qual se segue a criação de uma nova ordem. E pode significar algo mais profundo, quando há mudanças na estrutura da sociedade, com eventual troca do predomínio de uma classe ou estamento por outro. A Revolução Russa, que completa cem anos, foi ambas as coisas.

    Há algo de circular na data, depois que o socialismo "real" se mostrou um beco sem saída e o capitalismo foi restaurado: o século 20 começa com estátuas de Lênin sendo erigidas e termina com essas estátuas postas abaixo. Da oferta de livros que se publicam agora em torno do centenário, pelo menos dois são voltados à revolução em si. "Manifestos Vermelhos "" E Outros Textos Históricos da Revolução Russa"(Companhia das Letras) é uma substanciosa compilação de documentos da época.

    Leem-se ali, além das insistentes invectivas de Lênin contra a hesitação dos colegas, a lacônica proclamação do regime socialista pelo comitê militar do Soviete de Petrogrado (hoje, São Petersburgo) na manhã de 25 de outubro (7 de novembro segundo o calendário atual) e o discurso do líder menchevique (facção moderada) Martov em que já se refere à tomada de poder como golpe.

    O organizador do volume, Daniel Aarão Reis, escreveu longa introdução de cunho histórico. O vernáculo não é seu forte, mas o que lhe falta em expressão é compensado pelo apego aos fatos, inesperado no militante dogmático que ele foi, o que torna seu ensaio muito recomendável para o leitor que quer se iniciar.

    "A Revolução Russa" (Todavia), da australiana Sheila Fitzpatrick, historiadora especializada no tema, é uma compacta reconstituição do período, do final do século 19 até a consolidação da ditadura de Stálin nos anos 1930. Esta autora se confina à história política e adota um andamento linear, convencional. Sua prosa insípida é expressão, porém, de um sólido bom senso anglo-saxão, e apesar de uma ingenuidade aqui ou uma condescendência ali, ela não tem meias palavras ao discernir a vocação autoritária no âmago do partido bolchevique e na conduta de Lênin bem antes da revolução.

    A autocracia czarista foi por séculos um regime quase impermeável à reforma. Um imenso inconformismo se represava, conforme a intelectualidade, convertida a ideias radicais, passou a doutrinar parcelas do campesinato, associando o socialismo ao cristianismo. Na transição do século, uma onda de industrialização estimulada pelo governo gerou um operariado urbano pequeno (3 milhões num país de mais de 130 milhões), mas ativo e concentrado em São Petersburgo e Moscou.

    Somente a derrota na guerra, porém, com a enorme energia destrutiva que acarreta em termos de colapso da autoridade e desabastecimento, fez a revolução afinal eclodir. O primeiro ato, a revolução de 1905, que viu nascer o soviete (conselho de delegados) de operários e soldados como mecanismo político, ainda permitiu margem de manobra à autocracia. Concedeu-se um Parlamento liberal (a Duma), fez-se depressa a paz com o Japão. A revolta logo perdeu ímpeto, e a monarquia restabeleceu o mando despótico.

    Em fevereiro de 1917, o império perdia outra guerra, contra a Alemanha, que consumira as vidas de 5 milhões de russos. Manifestações e greves forçaram a abdicação do czar, e o poder se dividiu entre um governo provisório, com base no Parlamento, e os sovietes. Em outubro, diante de indícios de que o governo provisório se preparava para reprimir o partido bolchevique, Lênin e Trótski desfecharam a tomada de poder, consumada sem resistência.

    Muitos apologistas da revolução se esquecem de que seu cortejo de horrores nunca prescinde de uma autêntica guerra civil, como a que devastou a seguir (1918-20) uma Rússia já exaurida. Mas a escalada autoritária começou antes. Em novembro de 17 foi eleita uma Constituinte em votação popular na qual os bolcheviques obtiveram 25% (os socialistas revolucionários, esquerda não marxista, venceram com 40%). Em janeiro de 18, o governo revolucionário dissolveu a Constituinte, que não acatava suas ordens.

    As demais legendas foram proscritas. Em 21, as tendências dentro do partido foram proibidas. Lênin morreu em 24. Em 29, Trótski foi deportado e teve início o culto à personalidade de Stálin. Nos "grandes expurgos" de 1937-8, nada menos que 680 mil execuções foram contabilizadas pela polícia política. No afã de apressar o advento de sua utopia social, os bolcheviques abortaram uma revolução democrática no nascedouro. Autorizados por uma doutrina que desculpava tudo em nome daquela utopia, passaram a agir como psicopatas.

    otavio frias filho

    Otavio Frias Filho, diretor de Redação da Folha, é autor de "Queda Livre" (Companhia das Letras, 2003) e "Cinco Peças e Uma Farsa" (Cosac Naify, 2013). Escreve aos domingos, mensalmente.

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