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    Otavio Frias Filho

    O profeta das redes

    03/12/2017 02h00

    Fotolia
    Happy girl having positive comments of her social media profile

    Todo fenômeno social importante tem um intérprete que o explica e critica, quando não um profeta que o antecipa em meio a imprecações sombrias. Seria o filósofo francês René Girard (1923-2015) o intérprete e o profeta das redes sociais? Tendo desenvolvido o cerne de suas ideias entre os anos 1960 e 70, Girard não previu as redes sociais e nem sequer se interessava por tecnologia.

    Praticava uma antropologia altamente especulativa, baseada nas mitologias ancestrais e na forma como se repetem na literatura. Era um pós-estruturalista, como Foucault e Derrida, seus colegas de geração, mas desgarrado, espécie de ovelha negra do movimento que se tornou um conservador cristão e adotou os Estados Unidos como país. Escapou, assim, ao radar dos departamentos de ciências humanas brasileiros.

    Girard acreditava que, satisfeitas as necessidades de alimento e abrigo, o ser humano não sabe o que fazer com seu privilegiado córtex cerebral: não sabemos o que desejar. Imitamos, então, o desejo dos outros, numa complexa rede imantada por narcisismo e inveja. Em termos de arquétipo, essa tensão gera uma hostilidade hobbesiana crescente. Quando a beligerância irrompe como guerra entre todos, começa a "crise mimética".

    Uma figura da comunidade é então escolhida, por motivos mais ou menos fortuitos, como bode expiatório (Levítico, 16, 5-10) e literalmente sacrificada pelos demais. Girard fala em "linchamento reconciliador", que permite apaziguar a violência mimética sempre à espreita. A fórmula lembra a horda primitiva que assassina o pai, na mitologia freudiana, e Girard reivindica o parentesco com gosto.

    Ele chegou cedo a esse esquema e passou a aplicá-lo a todo mito disponível, dando um jeito de fazê-lo caber em seu estreito figurino. A Bíblia, Shakespeare e Dostoiévski, pródigos em rivalidades miméticas e sacrifícios expiatórios, são terreno propício que Girard cultivou em numerosos ensaios, nos quais se revela um exímio crítico literário.

    Não existe ideia original. Girard reconhece a dívida com Gabriel Tarde, um colega e rival de Durkheim para quem a sociedade é "uma coleção de seres na medida em que estão se imitando entre si". Girard reclama para si, também, o precedente valioso de Aristóteles: "O homem difere dos outros animais por sua capacidade maior de imitação" (Poética, 4). Mas sua teoria se apoia em pouca evidência científica.

    Os seres humanos talvez não sejam miméticos, afinal, mas os girardianos seguramente sim, de modo que se organizaram numa seita laica, como os lacanianos, por exemplo, mas no caso em moldes empresariais, sob a égide de uma entidade de nome inadvertidamente humorístico: Imitatio Foundation. Um dos primeiros investidores do Facebook é um apóstolo girardiano (o filósofo lecionou na Universidade Stanford), mas a conexão é mais profunda: basta reler o terceiro e o quarto parágrafo acima tendo em mente as redes sociais.

    Existe uma tendência a considerar a tecnologia neutra em si, seu uso é que seria "benéfico" ou "maléfico". Ideia sedutora que resiste mal à análise: a própria invenção da arma de fogo, entre outras, a desmente, pois se é plausível que tenha ajudado a estabelecer a lei e a ordem, parece evidente que causou mais mortes do que preveniu.

    Também parece inerente ao funcionamento das redes sociais propiciar desinformação e intolerância, conforme bilhões se fecham em cápsulas de centenas de indivíduos que afinal se agregam aos milhões segundo os mesmos desejos, preconceitos e obsessões, e ali se entregam a um vício narcísico que os mantém cativos da ilusão de segurança e companhia, imunes ao teste ameaçador da controvérsia.

    Essas distorções são notórias no caso do Facebook e também no outro braço do gigantesco duopólio digital, o Google, com as preferências nas pesquisas determinadas pela própria reiteração imitativa do mecanismo, para não mencionar os vieses da venda de posições de visibilidade. Mesmo a Wikipedia, na qual cada verbete acaba sendo escrito por fanáticos pelo tema/personagem, é condicionada por visões oficiosas, em geral edulcoradas ou eufemísticas, estropiadas aqui e ali por desafetos.

    Pelo lado econômico, o espaço digital é uma terra sem lei que faz lembrar a era das ferrovias pioneiras no fim do século 19; é plausível sustentar que o atual oligopólio deveria ser fracionado, como aquele, por decisão da sociedade, ou seja, do Estado. Mas do ângulo cultural, somente o trabalho persistente da educação pública, escolar e extraescolar, pode estimular, por meio da crítica e da prática da pluralidade, um uso mais "benéfico" das redes, por discutível que seja o sentido da palavra.

    otavio frias filho

    Otavio Frias Filho, diretor de Redação da Folha, é autor de "Queda Livre" (Companhia das Letras, 2003) e "Cinco Peças e Uma Farsa" (Cosac Naify, 2013). Escreve aos domingos, mensalmente.

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