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    Otavio Frias Filho

    Mártires do estilo

    31/12/2017 02h00

    Fernando Vivas/Folhapress
    Máquina de escrever usada por Jorge Amado, em exposição em Salvador

    Vivemos numa época em que se escreve mais do que nunca. Quem, incluindo o autor destas linhas, não gostaria de melhorar sua capacidade de expressão escrita? No entanto, se as regras gramaticais estabelecem de modo inequívoco como escrever direito, não existem regras que assegurem como escrever bem.

    Tirando de Letra
    Wilma Moura, Chico Moura
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    Como há muito de subjetivo e indefinível nessa aptidão, os manuais sobre o tema se limitam a oferecer diretrizes que eles mesmos crivam de ressalvas e exceções. Três desses livros foram publicados há pouco entre nós. "Tirando de Letra: Orientações Simples e Práticas Para Escrever Bem" (Companhia das Letras), do casal Chico e Wilma Moura (ele, professor; ela, editora) é o mais conciso, com 205 páginas, e o menos ambicioso deles.

    Como é habitual no gênero, voltado para a não ficção, os autores privilegiam clareza e despojamento entre as qualidades do estilo. Um capítulo final de "dúvidas recorrentes" aproxima o livro do manual de língua portuguesa que os autores não quiseram fazer, mas contém ótimos esclarecimentos. Seus glossários, porém, são de tal forma anêmicos que talvez fosse melhor tê-los descartado.

    "Como Escrever Bem - o Clássico Manual Americano da Escrita Jornalística e de Não Ficção" (Três Estrelas, selo ligado a este jornal), de William Zinsser, condensa, como diz seu subtítulo, a prática desenvolvida nas redações que produziram o padrão narrativo do jornalismo moderno. Outro adepto da simplicidade, Zinsser é o autor da máxima de que "reescrever" —remodelar passagens, cortar trechos, trocar palavras— "é a essência de escrever".

    Seu livro, lançado em 1976, é a expansão de um famoso livreto de 1959, "The Elements of Style", ampliado por E.B. White a partir da versão original de William Strunk Jr., que fora seu professor. Ali se ensina a preferir palavras curtas, evitar advérbios, adjetivos e a voz passiva, abominar substantivos abstratos. Zinsser desenvolve esses elementos numa prosa graciosa e atrativa. As partes 3 e 4 do livro talvez se tornem específicas demais (há um capítulo sobre narrativas de viagem) e, às vezes, repetitivas.

    O terceiro livro é "Guia de Escrita - Como Conceber um Texto com Clareza, Precisão e Elegância" (Contexto), do psicólogo e linguista canadense Steven Pinker, publicado em português no ano passado. O autor se propõe a corrigir os automatismos dos manuais, iluminando, a partir de pesquisas sobre cognição e linguagem, os mecanismos pelos quais tantas pessoas escrevem de forma confusa, inexata, ilógica, redundante e ambígua.

    De fato, se um texto que não é técnico se mostra incompreensível, a culpa cabe mais às limitações do autor que às do leitor. Pinker escreve com vivacidade e eloquência, e sua argumentação é muitas vezes fascinante, mas também algo exaustiva. Recomendam-se as passagens em que ele critica a escrita empolada e vazia dos departamentos de humanidades, por ele chamada de pós-moderna.

    As revelações da psicologia evolutiva, que notabilizaram o autor em seus estudos sobre cognição e violência, rendem resultados menos empolgantes neste trabalho sobre a escrita corrente. E Pinker, que começou criticando os manuais, na prática concorda bastante com eles, encerrando o livro com um capítulo dedicado a uma série de situações corriqueiras no estilo assim, sim/ assim, não.

    Todos os esforços em favor da simplicidade despojada são bem-vindos num país como o nosso, onde ainda se cultiva uma escrita ornamental, feita mais para iludir do que expor e esclarecer. Não se trata apenas da prolixidade afetada própria do Judiciário ou da verborragia evasiva no ambiente parlamentar.

    Bulas, manuais de uso, documentos oficiais, instruções ao consumidor etc. são redigidos de maneira nebulosa, eufemística, quando não abstrusa, no hábito deliberado de evitar compromissos e eludir responsabilidades. Comunidades inteiras (urbanistas, pedagogos e psicólogos, por exemplo) tendem a escrever num dialeto infestado de ideias vagas e substantivos abstratos que traduzem pouco sentido objetivo.

    Os autores desses livros coincidem ao enaltecer dois aspectos, além do despojamento. Um deles é a "mot juste" (palavra exata), na expressão atribuída a Flaubert, chamado por ironia de "mártir do estilo". É aquele termo que, pertencendo ao repertório comum, expressa com máxima precisão o que designa. O outro seria algo como sinceridade, não no sentido de ser veraz, embora isso seja exigência preliminar na escrita não literária, mas de ter algo de novo, útil ou surpreendente a dizer.

    otavio frias filho

    Otavio Frias Filho, diretor de Redação da Folha, é autor de "Queda Livre" (Companhia das Letras, 2003) e "Cinco Peças e Uma Farsa" (Cosac Naify, 2013). Escreve aos domingos, mensalmente.

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