O governo Temer está promovendo amplas reformas no Estado brasileiro sem que tenha recebido para isso qualquer tipo de mandato. Ele foi eleito como vice numa chapa que defendia os direitos sociais e enfrenta forte oposição da opinião pública, majoritariamente contrária às reformas. Mas o que deveria coibir ou moderar o seu programa tem sido sistematicamente ignorado porque o presidente se vê como portador de uma espécie de salvo-conduto. Ele hoje age livremente, sem compromisso com as urnas ou com o que pensam os eleitores.

Limitação do financiamento da saúde e da educação, medidas para dificultar as aposentadorias dos mais pobres, terceirização das atividades-fim das empresas e reforma trabalhista. Essa arrojada reforma liberal dificilmente seria aprovada pelas urnas e, em circunstâncias normais, jamais teria uma tramitação rápida e integral no Congresso. Que mágica aconteceu com o presidente e o partido do presidente, o PMDB, uma agremiação conhecida por ser patrimonialista e sem ideologia, para que subitamente adotasse uma agenda liberal coerente e ousada e conseguisse, contra toda experiência pregressa, passá-la como um trator sobre o Congresso Nacional?

Temer tem um dos piores níveis de aprovação para um presidente no regime democrático, comparável apenas aos impedidos Collor e Dilma, mas não parece se importar. Empossado pelo processo de impeachment que ele interpreta como uma rejeição das políticas dos governos petistas, Temer se deu o direito de adotar uma agenda de reformas sem qualquer relação com o que foi discutido nas eleições. Colabora também para seu desdém com os eleitores uma condenação que teve na Justiça e que provavelmente o torna inelegível pela Lei da Ficha Limpa.

Essas circunstâncias fizeram dele o agente ideal para implementar o programa de reformas sistematizado num documento conhecido como "Ponte para o Futuro". O coordenador da equipe de redação do documento, o ex-ministro da Previdência Roberto Brant expressou, numa entrevista, o que considerava necessário para aprovar um programa tão extenso e tão ousado: "Vai ser preciso agir muito rápido. E sem mandato da sociedade. Vai ter de ser meio na marra".

Enquanto Lula e Fernando Henrique Cardoso empenharam longos oito anos negociando cargos e cedendo emendas aos projetos em morosos acordos legislativos para implementar seus programas, Temer, em menos de um ano, aprovou a PEC do teto de gastos e a regularização da terceirização e promete em breve aprovar suas propostas de reforma da Previdência e reforma trabalhista. O trator sobre o Congresso é a realização dessa promessa de reformas "muito rápidas", "sem mandato" e "na marra". Resta ainda saber se a cidadania, cuja opinião majoritária é contrária às reformas e contrária ao governo Temer, vai saber reagir ou se vai ser anulada, seguindo dividida em dois campos políticos antagônicos cujas lideranças impedem qualquer tipo de colaboração.

pablo ortellado

É professor do curso de Gestão de Políticas Públicas da USP desde 2005. Fez graduação, mestrado e doutorado em filosofia na mesma universidade. Escreve às terças.