Desde a última quinta-feira (28), as redes sociais foram tomadas pela polêmica em torno da performance no Museu de Arte Moderna no qual o artista Wagner Schwartz ficava nu e se deixava manipular pelo público, tendo sido tocado por uma criança que assistia a apresentação.
Mais de dois milhões de links sobre a performance, acusada de estimular a pedofilia, foram compartilhados. O tema foi, de longe, o mais discutido no fim de semana nas redes sociais.
Mas a controvérsia não é sobre o que parece ser. O debate parece ser sobre proteção à infância ou sobre a irresponsabilidade dos artistas, mas, quando analisado de perto, se vê que é, na verdade, apenas uma estratégia dissimulada da direita para manipular o público e fazer avançar a agenda liberal de privatizações e redução dos serviços públicos.
O caso da performance no MAM acontece logo após um caso muito parecido no qual uma exposição no Santander Cultural em Porto Alegre foi acusada de promover a pedofilia e a zoofilia, tendo sido cancelada após protestos.
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Criança interage com homem homem nu no Museu Arte Moderna de São Paulo |
Por trás das duas campanhas, uma coisa em comum: um conjunto de organizações de direita que acusam a esquerda de promover o desvio e o crime sexual por meio das artes.
Como se vê num levantamento das matérias e posts mais compartilhados no Facebook, os principais promotores da campanha foram o MBL, o Instituto Liberal de São Paulo, o prefeito de São Paulo João Doria, o senador Magno Malta, os políticos da família Bolsonaro e o senador ruralista Ronaldo Caiado.
Eles estão fazendo o que os americanos chamam de "guerras culturais": estão manipulando a opinião pública, explorando a justa preocupação da sociedade com a proteção da infância, apenas para fazer avançar uma agenda oculta de redução dos serviços públicos.
O principal agitador da campanha contra o MAM foi o Movimento Brasil Livre, o MBL. O grupo foi o primeiro a denunciar a exposição e fez, desde o dia 28, dezenas de postagens na sua página de Facebook e no seu site, o Jornalivre.
As matérias do Jornalivre sobre o tema, somadas, chegaram a quase 500 mil compartilhamentos, cerca de um quarto de tudo o que se compartilhou sobre a polêmica nos últimos dias.
O MBL é um agrupamento político que descobriu que poderia usar o sentimento de revolta da população contra a corrupção para promover ideias liberais, já que o principal alvo da Lava Jato, na sua fase inicial, era o PT, um partido de esquerda.
O grupo foi um dos principais promotores das manifestações que pediram o impeachment da presidente Dilma Rousseff. Mas depois que Dilma caiu e o presidente Michel Temer assumiu, o MBL mudou de postura: passou a minimizar as pesadas denúncias de corrupção que pesam contra Temer e passou a apoiar abertamente seu governo e sua impopular agenda de reformas liberais.
Assim como surfou cinicamente na onda anticorrupção para promover uma agenda oculta, o MBL insufla agora uma cruzada moral contra as artes, na qual não parece acreditar de verdade.
A princípio, não parece haver qualquer relação entre uma performance artística num museu e uma campanha contra a esquerda. Mas o MBL e outros grupos de direita fizeram questão de deixar claro que, ao atacar as artes, estavam na verdade atacando a esquerda.
Num dos posts mais compartilhados sobre o assunto, um dos líderes do MBL, Fernando Holiday diz que a performance "é a implementação de uma agenda ideológica da esquerda".
O Instituto Liberal de São Paulo, numa imagem que teve 280 mil compartilhamentos, argumentou, por sua vez, que, "para a esquerda, mãe que leva filha para tocar em homem nu é arte".
Em vídeo compartilhado no Youtube, o delegado Francisco Francischini disse que a esquerda "tem interesse político-partidário em destruir a família" e matéria do site Ceticismo Político, que teve 40 mil compartilhamentos, acusou a performance de fazer parte da "narrativa da extrema-esquerda".
O próprio fato que gerou a polêmica, se olhado de perto, parece, no mínimo, desproporcional com a repercussão –o que sinaliza os interesse políticos que o promovem. Na performance, o artista Wagner Schwartz dialoga com uma obra da consagrada artista Lygia Clark, chamada "bicho", uma escultura de metal com dobradiças que pode ser livremente manipulada e rearranjada pelo público.
Na performance, Schwartz manipula uma réplica de plástico de uma das esculturas de Clark e convida o público a fazer o mesmo com seu corpo nu, como se fosse uma peça viva da artista. A obra não tem nenhuma conotação erótica e o MAM responsavelmente sinalizou ao público que a apresentação continha nudez.
Uma coreógrafa que acompanhava a performance aceitou o convite do artista e, junto com sua filha, tocou o pé de Schwartz. Foi essa cena em que uma criança toca o pé de um homem nu, com a supervisão da mãe, no contexto de uma performance artística sem qualquer conteúdo erótico que a direita explorou em sua campanha política contra a esquerda.
Logo, a cena passou a ser retratada nas redes sociais como se a esquerda estivesse em uma campanha sinistra, estimulando crianças a tocarem em um homem nu, em "cena libidinosa", "condenada e absolutamente imprópria", como disse, por exemplo, o prefeito de São Paulo, João Doria, aliado do MBL.
A direita aproveitou a grande desconexão das artes visuais com o público –que não entende os caminhos do desenvolvimento formal da linguagem– para tirar a obra do seu contexto e transformar uma performance inócua em uma pérfida apologia da pedofilia.
Assim, sem qualquer constrangimento, o ativista de direita Alexandre Frota, um ator de filmes pornô, pode se alvoraçar em campeão da moralidade e ir ao museu agredir verbalmente funcionários e visitantes os chamando de "pedófilos".
Também parece cínica a campanha do MBL. Como mostrou reportagem da Folha, o agrupamento foi fundado por Pedro D'Eyrot, um dos membros do Bonde do Rolê, um grupo musical que explora amplamente temas de sexualidade não convencional.
Esses atores políticos não são campeões da moralidade da família –eles estão usando a sensibilidade dos brasileiros com o abuso sexual de crianças para fazer uma campanha contra a esquerda, o que abriria espaço para sua agenda oculta de diminuição do Estado e de redução do financiamento de escolas e hospitais.
É professor do curso de Gestão de Políticas Públicas da USP desde 2005. Fez graduação, mestrado e doutorado em filosofia na mesma universidade. Escreve às terças.