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    Pablo Ortellado

    A direita agora é contra o sistema

    31/10/2017 07h55

    As guerras culturais no Brasil seguem a todo vapor. Na penúltima semana, a campanha contra Caetano Veloso, acusado de "pedófilo", virou trending topic no Twitter; um seminário sobre a revolução russa, na UERJ, foi interrompido por protestos de apoiadores de Jair Bolsonaro; a exibição de um documentário sobre Olavo de Carvalho enfrentou protestos e agressões na UFPE e uma palestra da filósofa Judith Butler no Sesc está sendo alvo de uma campanha que pede o seu cancelamento.

    Embora pelo menos um desses episódios tenha o protagonismo da esquerda, as grande novidade nesses conflitos são a emergência e a força do ativismo da nova direita que, num primeiro olhar, parece surpreendente e até fora do lugar.

    Esse ativismo brada contra a universidade e as escolas, os artistas e os meios de comunicação, acusados de elitismo, globalismo, esquerdismo e de tentar destruir a família e a moral convencional. O estranhamento que essas acusações nos causam se deve a uma novidade: ao contrário da antiga, a nova direita é antissistêmica, ou, pelo menos, se vê como antissistêmica.

    Os mais velhos se acostumaram a pensar que antissistêmica era a esquerda. Quando tomou a forma contemporânea, na explosão de 1968, a "nova" esquerda colocou em xeque todas as instituições sociais, não apenas o capitalismo, mas também a hierarquia, o patriarcado, o racismo e a xenofobia.

    Mas, passados 50 anos, apesar do capitalismo continuar sendo o sistema vigente inconteste, várias das reivindicações emancipatórias da geração de 1968 foram incorporadas como elementos normativos das instituições que cuidam da reprodução social.

    Nas escolas e nas universidades, nos museus e nas instituições artísticas, assim como nos meios de comunicação, o respeito à diversidade e aos direitos humanos, a igualdade de gênero, a condenação do racismo e o estímulo à participação foram incorporados como os valores dominantes.

    Isso não quer dizer que esses valores sejam efetivamente respeitados, mas que se formou um certo consenso de que esses são os valores que deveriam orientar as instituições que nos educam, que nos informam, que nos entretêm e por meio das quais nos expressamos.

    Com essa incorporação de valores da geração de 1968 pelo establishment, a nova direita pode agora se ver como rebelde.

    Hoje, jovens estudantes, entusiastas de Jair Bolsonaro questionam em sala de aula os professores que defendem os direitos humanos, da mesma maneira como, noutros tempos, os jovens questionavam o ensino da história oficial da ditadura; roqueiros e humoristas provocam o mainstream com arte e humor politicamente incorretos com a mesma verve e irreverência que víamos nos artistas da contracultura; a direita agora faz passeata, protesto e boicote; ela é contra a Globo e a Folha, ela é contra o Masp, ela é contra a USP; ela é contra o sistema.

    A esquerda, por sua vez, está num beco sem saída. Sem a força do contraponto socialista, a esquerda quer apenas melhorar o sistema: quer mais direitos sociais, quer que se respeitem os direitos humanos, quer que se acolham os imigrantes e os refugiados e quer que as artes e as letras respeitem as diferenças.

    Enquanto a direita pode se apresentar como querendo por fim à ordem vigente, a esquerda parece querer sobretudo o seu aperfeiçoamento. Não é uma posição confortável em um mundo que está em crise.

    pablo ortellado

    É professor do curso de Gestão de Políticas Públicas da USP desde 2005. Fez graduação, mestrado e doutorado em filosofia na mesma universidade. Escreve às terças.

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