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    Pablo Ortellado

    Documentário sobre 1968 fala também sobre junho de 2013

    14/11/2017 08h35

    Estreou na última quinta-feira (9) o belo documentário de João Moreira Salles, "No intenso agora". O filme discute, a partir de um episódio biográfico do diretor, o contraste entre o sentimento de plenitude que toma os protagonistas nos grandes momentos históricos e o vazio morno da existência que impera quando a vida retorna à normalidade.

    Com base em imagens de arquivos, o filme analisa três eventos políticos chave de 1968 e seu entorno: a revolução cultural chinesa, o maio francês e a invasão soviética que pôs fim à Primavera de Praga.

    O documentário discute a relação entre a alegria da mãe do diretor durante uma viagem de turismo à China e os eventos políticos que transcorriam naquele país; discute também, em paralelo, o contraste entre a felicidade dos atores políticos do maio francês e a sua incapacidade de lidar com a existência banal que se seguiu; finalmente, aponta, em cada momento, as limitações dos protestos de maio: as distorções presentes nas memórias dos militantes, o papel subalterno de negros e mulheres e a comercialização do movimento.

    Nas entrevistas, João Moreira Salles tem dito que a recepção do filme tem sido marcada pelos acontecimentos recentes do local em que é exibido e que, aqui, a referência inescapável tem sido os protestos de junho de 2013.

    O filme resgata uma histórica entrevista de Jean-Paul Sartre com Daniel Cohn-Bendit para a revista "Le Nouvel Observateur" na qual o intelectual francês inverte posições e se põe a interrogar e escutar o jovem líder dos protestos.

    A certa altura, Cohn-Bendit diz que ainda que os protestos não perdurem, eles terão constituído uma espécie de experimento que rompe com o funcionamento normal da sociedade, um experimento que mostrará que, ainda que por um instante, tudo pode ser diferente do que é. "Isso" diz Cohn-Bendit, "será prova suficiente de que algo assim pode existir".

    É inevitável para nós, brasileiros, não pensar em junho de 2013. Também aqui, para quem viveu a plenitude daqueles dias, tudo o que veio depois parece um desdobramento pálido, sensação que é ainda agravada pela crise econômica e pelos flagelos da polarização política.

    Junho foi o momento em que milhões tomaram a palavra e saíram às ruas, mostrando um país unido, contra a classe política e por direitos. O país foi tomado por manifestações de rua, assembleias para preparar os protestos, um debate público efervescente e uma solidariedade inédita para enfrentar a violência do Estado.

    Tudo o que veio depois parece um anticlímax, uma involução, um eco pálido e evanescente daquele momento de plenitude em que tudo era esperança: tomar a vida nas próprias mãos, viver numa comunidade verdadeira e dar sentido à política, uma política feita pelas pessoas e não pelos políticos.

    No filme de Salles, vemos um plano longo e triste no qual uma jovem operária francesa que havia entrado em greve em maio se recusa a voltar para a fábrica. Dois sindicalistas tentam persuadi-la de que não tinham perdido a batalha, de que sua luta não tinha sido em vão, de que o patrão tinha feito concessões.

    Mas ela permanece inconsolável, incapaz de aceitar que a vida que ganhou sentido com a luta vai ser substituída outra vez pela miséria da fábrica. Seu olhar de tristeza, sua relutância em resignar-se é a mesma que vimos em 2015 e outra vez em 2016 nos secundaristas brasileiros, herdeiros de junho, que tiveram que desocupar suas escolas e trocar um cotidiano embriagante de autodeterminação, de comunidade e de autoformação pela rotina triste da velha escola.

    Moreira Salles sugere que o contraste entre essas explosões de rebelião e a vida que segue depois é como a paixão desconcertante que arrebata e o amor banal e morno em que se transforma e que nosso desafio é aprender a viver na pequena miséria cotidiana, tanto aquela do amor, quanto aquela da política.

    Mas talvez devamos pensar inversamente: que a memória da paixão é o motor que alimenta e orienta o amor cotidiano e, por analogia, que os bonitos surtos de rebelião oferecem a direção para o futuro, mesmo depois que os acontecimentos ficaram distantes no tempo.

    Maio de 1968, na França, assim como junho de 2013, no Brasil, permanecem eventos insondáveis, inexplicáveis. Lá, o período ainda é chamado de "os acontecimentos" e, aqui, simplesmente de "as manifestações".

    Ninguém sabe dizer ao certo por que aconteceram, nem consegue reduzir seu significado a uma explicação simples. Mas foram dias tão intensos e tão carregados de esperança e sentido que, passados anos, sua luz consegue ainda iluminar o futuro.

    pablo ortellado

    É professor do curso de Gestão de Políticas Públicas da USP desde 2005. Fez graduação, mestrado e doutorado em filosofia na mesma universidade. Escreve às terças.

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