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    Pablo Ortellado

    Universidade pública ainda é injusta, mas cobrar mensalidade não é a saída

    28/11/2017 09h46

    Na semana passada, o Banco Mundial publicou, com grande alarde, um documento intitulado "Um ajuste justo" reunindo um conjunto amplo de recomendações para o governo brasileiro sobre como aumentar a eficiência do setor público com a redução de gastos.

    Entre as muitas recomendações, o documento sugere que as universidades públicas brasileiras devem cobrar mensalidade dos seus alunos porque a maior parte deles está entre os brasileiros mais ricos e o subsídio à sua educação é, portanto, regressivo, isto é, a receita vem de impostos que oneram mais os mais pobres e a despesa vai para os que menos precisam de auxílio do Estado.

    O estudo do Banco Mundial não traz nenhuma informação propriamente nova, mas busca consolidar recomendações sugeridas por muitos estudos econômicos, criando uma espécie de agenda de reformas baseada em evidências empíricas e na comparação com as boas práticas internacionais.

    Embora, de maneira geral, seja coerente e esclarecedor sobre os problemas da eficiência do gasto público, o estudo é enviesado. Ele toma como pressuposto positivo o teto de gastos aprovado pelo governo Temer e o entendimento de que nosso Estado é grande demais, o que é um julgamento eminentemente político.

    Por esse motivo, embora ressalte, no começo, os problemas dos altos juros da dívida pública e da nossa estrutura tributária regressiva, ele é orientado para a consolidação de uma ambiciosa agenda de reformas liberais que tem como ênfase o corte de gastos.

    Essa orientação está em linha com os esforços da "Ponte para o futuro" do governo do PMDB, ainda que o estudo tenha sido originalmente encomendado no governo Dilma, pelo ex-ministro Joaquim Levy (o que reforça a impressão, aliás, de que, a despeito da retórica, as políticas econômicas do governo Temer e do segundo governo Dilma foram menos diferentes do que normalmente se supõe).

    Não é apenas no pressuposto que o estudo está enviesado. Em cada ponto, no esforço de subsidiar suas recomendações de orientação liberal, ele faz um uso bastante seletivo do compromisso com a equidade, lembrando da justiça social apenas quando ela pode ser um argumento adicional para justificar o corte de despesas. Mesmo nesses casos, ele nunca busca explorar reformas alternativas que aumentem a equidade se elas implicarem a manutenção ou a ampliação do gasto.

    Embora reconheça que a aprovação dessa agenda liberal é um grande desafio legislativo, ele não compara a dificuldade desse esforço com o de alternativas como a revogação do teto, o enfrentamento do problema dos juros da dívida ou a implementação de uma reforma que crie uma estrutura tributária progressiva. Em alguns pontos essa seletividade é ainda menos sutil.

    Quando o desempenho do gasto social não é ruim, o relatório o compara com os mais altos padrões dos países da OCDE para justificar um corte que aumente a sua "eficiência"; já quando é preciso justificar um corte em um setor bastante sensível (por exemplo, o salário dos professores do ensino básico), o relatório enfatiza a comparação apenas com os países de renda média.

    Esses expedientes argumentativos, de natureza política, ficam muito claros nas recomendações que o relatório faz para as universidades públicas. Em resumo, o relatório recomenda uma economia de aproximadamente 0,3% do PIB com a implementação de uma cobrança de mensalidade aos estudantes, sugerindo uma correção dos problemas de acesso que adviriam dessa cobrança pela ampliação do Fies (Fundo de Financiamento Estudantil).

    No diagnóstico do problema, o estudo está correto: os impostos que financiam a universidade pública oneram mais os mais pobres e o gasto com o ensino superior beneficia uma parcela da sociedade que é mais rica.

    Mas no empenho em justificar o corte de despesas, o estudo não olha para nenhuma alternativa que amplie a justiça social –seu compromisso com a equidade é pontual e meramente retórico e só aparece quando pode ser utilizado para justificar um corte de despesas.

    Assim, se olhasse para o impacto das reformas que já vem sendo realizadas na universidade, como a adoção de cotas, veria que, nos últimos anos, o acesso tem sido democratizado com bastante sucesso, fazendo com que o perfil socioeconômico do universitário tenha se aproximado do perfil do concluinte do ensino médio (que, do ponto de vista técnico, é o parâmetro de comparação adequado e não o perfil médio da população, como faz o estudo).

    Se o recurso ao argumento da equidade pelo relatório não fosse instrumental, retórico e quase cínico, poderíamos argumentar que um conjunto de ações que consolidasse a política de cotas ou reformasse com outras abordagens o problema do acesso, combinado com o enfrentamento da evasão no ensino médio e uma reforma tributária que enfrentasse a regressividade no lado da receita, seria medida muito mais eficiente para a equidade do que a cobrança de mensalidade, combinada com uma política de financiamento estudantil.

    Esse viés do relatório é verdadeiramente uma pena, porque se fosse equilibrado e se, de fato, tentasse conciliar melhorar a eficiência dos gastos públicos com o enfrentamento da nossa vergonhosa desigualdade, ele poderia contribuir para o debate público em vez de ser apenas uma arma política a disposição dos setores liberais.

    Em particular, ele poderia sensibilizar uma parte da esquerda de que precisamos urgentemente separar o interesse dos mais pobres que precisa ser protegido dos injustificáveis privilégios de pequenos setores do funcionalismo, que aparecem tão frequentemente amalgamados em certa retórica sindical.

    pablo ortellado

    É professor do curso de Gestão de Políticas Públicas da USP desde 2005. Fez graduação, mestrado e doutorado em filosofia na mesma universidade. Escreve às terças.

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