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    Pasquale Cipro Neto

    (N)O mundo dos amados batistas

    30/05/2013 03h00

    Corriam os tristes anos 70, quase 80. Em seu memorável LP "Nos Dias de Hoje", Ivan Lins incluiu a canção "Aos Nossos Filhos" (melodia dele; letra de Vítor Martins).

    A gravação de Ivan é linda, mas a de Elis Regina é mais do que antológica. Encarnando cada palavra da pungente letra do ituveravense Vítor Martins, Elis chora e faz chorar qualquer ser humano minimamente sensível. Se você nunca ouviu a canção na voz de Elis, ouça-a. E tente saber do que tratam os versos de Vítor.

    Eis a letra: "Perdoem a cara amarrada / Perdoem a falta de abraço / Perdoem a falta de espaço / Os dias eram assim / Perdoem por tantos perigos / Perdoem a falta de abrigo / Perdoem a falta de amigos / Os dias eram assim / Perdoem a falta de folhas / Perdoem a falta de ar / Perdoem a falta de escolha / Os dias eram assim / E quando passarem a limpo / E quando cortarem os laços / E quando soltarem os cintos / Façam a festa por mim / Quando lavarem a mágoa / Quando lavarem a alma / Quando lavarem a água / Lavem os olhos por mim / Quando brotarem as flores / Quando crescerem as matas / Quando colherem os frutos / Digam o gosto pra mim".

    O tempo passou, as coisas mudaram (um pouco só, creio) etc., e, diferentemente do que ocorria naquela época, hoje o brasileiro pode dizer o que bem entender (ou quase isso).

    E aí vem um cantor e compositor popular --bem popular-- e concede uma entrevista em que declara que mereceu o "castigo" que lhe foi dado, já que ele "estava errado" e recebeu de quem representava o poder estabelecido o mesmo castigo que pais e mães podem dar a seus filhos a título de correção de comportamento, de conduta etc. O "artista" disse que seu "erro" foi ter usado de suas prerrogativas de funcionário de uma livraria para ceder a algumas pessoas livros considerados "subversivos".

    O cantor disse que foi preso e torturado, física e psicologicamente, mas não acha que seus torturadores erraram, embora ele não recuse os mil e tantos reais que recebe mensalmente por ter sido vítima dessa tortura.

    Como sempre digo neste espaço, é preciso saber ler as linhas e, sobretudo, as entrelinhas do que se diz ou se escreve. Em outras palavras, o tal "artista" disse que pais e mães podem torturar, se o objetivo é "corrigir". Enfim, quem faz coisa errada tem mesmo é que apanhar, ou, numa outra versão, menino levado tem mesmo é de ir para o pau de arara.

    É incrível como nessas horas sempre se esquece um princípio básico da Constituição, segundo o qual o Estado é responsável pela integridade dos que estão sob sua custódia. É mais do que incrível ler nas tais "redes sociais" baboseiras mil, de gente que não consegue de jeito nenhum ater-se à essência da coisa. Haja!

    Nisso tudo há uma grande ironia, que está no significado do nome e do sobrenome do autor da pérola: o termo "amado" dispensa explicações; "batista" é aquele que administra o batismo.

    Como se sabe, o batismo é o primeiro sacramento do cristianismo, cujos princípios dispensam explicações e teorias, mormente em pleno feriado de Corpus Christi. Definitivamente, não é nem um pouco cristão defender a tortura, seja lá qual for a razão de sua prática. E, é bom que se diga, não é preciso ser cristão para ter nojo da tortura, venha de onde vier.

    É, meu caro Vítor, o tempo passou, mas, para muita gente escura e sombria, os teus nobres versos ainda não se materializaram. Muita gente ainda não cortou os laços, ainda não soltou os cintos. A alma ainda não foi de todo lavada. A água também não foi lavada; continua suja, muito suja, talvez mais suja do que era quando lavraste os versos de "Aos Nossos Filhos". E os frutos, se é que foram colhidos, são ácidos, meu caro, e têm um gosto ruim, muito ruim. É isso.

    pasquale cipro neto

    Escreveu até dezembro de 2016

    Professor de português desde 1975, é colaborador da Folha desde 1989. É o idealizador do programa "Nossa Língua Portuguesa" e autor de obras didáticas e paradidáticas.

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