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    Pasquale Cipro Neto

    '... supostamente teria forjado...'

    17/10/2013 03h00

    Neste espaço, já tratei do uso exagerado e exageradamente prudente ("medroso" talvez fosse melhor) do futuro do pretérito, uma das tantas pragas que golpeiam o texto jornalístico de hoje. Com receio de processos, jornalistas trocam uma construção como "O governador disse que o ex-servidor recebeu propina" pela cansativa e vaselinada forma "O governador disse que o ex-servidor teria recebido propina" ou, pior ainda, por "O governador teria dito que o ex-servidor teria recebido propina".

    Detalhe: o governador de fato disse que o ex-servidor recebeu propina, o que não é prova cabal de que o ex-servidor é corrupto, isto é, o fato de o governador dizer que o ex-servidor recebeu propina não transforma essa afirmação em verdade incontestável.

    Moral da história: se um jornalista transcreve a fala do governador, da qual há registros, gravações etc., inserindo-a com um verbo como "dizer", "afirmar" etc., é totalmente desnecessário empregar o futuro do pretérito, que, entre seus vários valores, tem justamente o de indicar que o locutor não quer responsabilizar-se pela informação do enunciado. Ora pipocas! Se o governador diz, com todas as letras, que o ex-servidor recebeu propina, ao jornalista basta dizer "O governador disse que o ex-servidor recebeu ('recebeu', e não 'teria recebido') propina". Fazendo assim, o jornalista não afirma que o ex-servidor recebeu propina; afirma que o governador disse que o ex-servidor recebeu propina.

    Num caso como esse, a opção por "teria recebido" tira muito da força da informação e quase coloca sob suspeita a declaração do governador, como se não houvesse certeza de que ele de fato disse o que disse.

    Pois bem. Há alguns dias, um vídeo desmentiu um policial do Rio de Janeiro, que, correndo com um morteiro na mão... Não preciso continuar, preciso? O leitor certamente sabe do que estou falando. Pois bem. Conversa vai, conversa vem, nota vai, nota vem, a Polícia Militar do Rio de Janeiro divulgou uma nota em que se dizia que "abriu sindicância para analisar as imagens em que um policial supostamente teria forjado flagrante". Elaiá! Como diriam alguns, "vaselinou geral, mano!". Como se já não bastasse o vaselínico "teria forjado" (as imagens e o áudio deixam em maus lençóis o PM que, com um morteiro na mão, corre ao encontro de um manifestante), o texto acrescenta o "supostamente", quase uma redundância em relação a "teria forjado". Haja vaselina!

    Alguém já disse que a corrupção da linguagem é inerente à corrupção em si, à corrupção da realidade etc. Como se vê, o estratagema que grassa no nosso jornalismo faz escola (caricata, bem pior do que a original, diga-se).

    Por falar em vaselina, José Ernesto Credendio, companheiro desta Folha, mostrou-me ontem algumas maravilhas publicadas há alguns dias sobre mais um dos intermináveis ataques a caixas eletrônicos Brasil afora. Acredite, caro leitor: "Suspeitos explodem caixa eletrônico e fogem com dinheiro..."; "Suspeitos explodem caixa eletrônico no interior da Paraíba"; "Suspeitos explodem quatro caixas eletrônicos em Gavião Peixoto-SP...". O caro leitor saberia dizer como é que um suspeito explode um caixa eletrônico? Bem, se você duvida da legitimidade dessas pérolas, basta entrar no Google e escrever "suspeitos explodem" ou "suspeitos explodiram". O que vem é chumbo grosso.

    Pois é, se suspeitos explodem caixas eletrônicos, nada mais justo do que dizer que "um policial supostamente teria forjado flagrante". Falta muito pouco para alguém ser flagrado com a mão na massa e dizer, alto e bom som: "Esse não sou eu; aliás, eu não sou eu", ou melhor, "Eu não seria eu" ou "Eu supostamente não seria eu" ou, melhor ainda, "Eu supostamente não teria sido eu". É isso.

    pasquale cipro neto

    Escreveu até dezembro de 2016

    Professor de português desde 1975, é colaborador da Folha desde 1989. É o idealizador do programa "Nossa Língua Portuguesa" e autor de obras didáticas e paradidáticas.

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